Por que estas pulsões ocêanicas?

Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?

***

A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.

terça-feira, 31 de dezembro de 2013


Ouço: agora o som ameno tranquiliza
espalhando luxúria
brisa de verão
suor calor paixão
dos olhos de moça tímida
intimida
seduzida
e o passar dos dias é martírio sem tua boca
ausente, queda inquieto o fluxo
a espraiar-se sobre teu corpo pela alma
quente porém inverno
fundo - talvez inferno!
Perco-me
nos transeuntes da avenida Rio Branco
no banco da praça Osório
no velório em Irajá
mesmo já morto, resisto
porque a fome em devorar-me move a veia aberta
pulsão oceânica
impulso em afirmar a vida inconstante
transitória
ilusória
caso não sentida em si mesma aqui dentro
pulsante
no calor amante de escalar os degraus da beleza tua
fascinante
pele que pelo amor se refaz em fogo ardente
fênix que me faz viver revivendo
o tempo que jaz no abismo da memória aos poucos
até não vê-la mais...

Trecho de um poema de fôlego, by Cesar de Alencar

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

A constância da transitoriedade da vida


Panta hei, dizia Heráclito: tudo flui. Talvez ele mesmo não tivesse usado essas palavras, que seus admiradores e detratores se lhe referiam enquanto uma síntese do seu pensamento. Talvez não seja senão mais um daqueles casos em que se procura resumir a grandiosidade de um homem em poucas palavras, um resumo que quase nunca corresponde ao seu valor devido. A questão é que sendo a percepção de Heráclito sobre a transitoriedade das coisas desse mundo uma de suas grandes anunciações, é pouco honroso encerrá-lo como apóstolo do devir, ele que procurou mostrar que em meio à transitoriedade das coisas deve o homem ater-se ao mais importante: ao que seria a razão de ser de toda mudança e de todo fluxo, quer dizer, à 'razão'. Eis o ponto primordial da sabedoria de Heráclito: se tudo neste mundo é transitório e inconstante, atenha-se ao lógos, à razão de ser das coisas desse mundo, à razão de ser de nossa própria existência. Sua alma é capaz de lhe mostrar esse caminho, para evitar que nos percamos no vir a ser infindo, para nos fazer ver que é na razão que a vida humana pode chegar a se realizar com valor. Deixar seguir o curso dos rios, que nunca é o mesmo, e com isso nunca ser o mesmo é naufragar em meio à inconstância do mundo, é caminhar sonâmbulo como se pudesse ver e ouvir as coisas como são, mas com isso perder-se em fragmentos, em instantes, em afluentes. Só aquele que ausculta o lógos está em vigília: sua vida não se perde, mas se encontra no que há de mais profundo - a constância de si.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Os deuses gregos da Verdade



DIONÍSIO

O deus estrangeiro, talvez da Trácia ou do Egito, é sobretudo o deus da contradição, ou antes, de todas as contradições. Abarca em si vida e morte, alegria e tristeza, benevolência e crueldade, touro e cordeiro, macho e fêmea, animal e deus – esta última oposição expressa o homem e a própria humanidade, o seu ser contraditório e complexo, entremeado pelos impulsos animalescos e a presença constante da divindade. Dionísio como o deus-animal é o próprio homem em forma de símbolo. Em Dionísio, a vida se mostra inteira, imensa e profunda, como sabedoria. A arrogante presunção do conhecimento, de querer abarcar toda a realidade e toda a vida situando-se dentro dela, brota de Dionísio. E é por esse motivo que sua manifestação se dá na contradição, pois a avidez de apreender todo o jogo da vida só poderia se dar ela mesma no jogo, na vida inteira com todas as suas contradições e seus extremos, na torrente que faz sucumbir a individualidade enrijecida na imensidão do mundo entregue ao caos. Isto é o que se percebe tanto em seu mito quanto em seu culto. Enquanto mito, Dionísio vincula-se a Creta e a “senhora do labirinto”, Ariadne, como aparece já em Homero, e do qual desponta, para além de outros aspectos, sua essência contraditória pela relação deus-animal e sua relação com o feminino em primeiro plano. Essência que se faz por confirmar pelos rituais, documentados na tragédia, e que nos conduzem a uma devida apreciação dos cultos báquicos e orgiásticos de louvor à divindade. Cultos em que a dança e a música, como Nietzsche havia intuído, mas também o jogo e a alucinação, produzem em meio ao influxo bestial da perda de si uma ruptura contemplativa, artística, visionária, uma espécie de separação de índole cognoscitiva – quer dizer, o êxtase, em sentido mais literal, libera um excedente de conhecimento, e desse modo é instrumento e não fim do ritual. Mas de que tipo de excedente de conhecimento se está a dizer? As fontes tanto antigas quanto modernas são unânimes em afirmar que a festa orgiástica, ao liberar o indivíduo destes seus limites individuais, portanto ao quebrar os condicionantes de sua experiência cotidiana, faz o homem imergir no estado de oposição e jogo entre o animal e o divino, um estado que não chega a ser nem um nem outro, mas expressa a própria condição do deus, um estado de conhecimento não normal nem cotidiano, um estado que os gregos chamavam de loucura, manía. É nesse estado de loucura báquica que se chega, nas palavras de Filon, a contemplar o objeto de seu mais vivo desejo. Tal visão de iniciado, provocada por essa manía, teve em muitos o caráter de adivinhação, um poder mântico de ver o futuro, e que é o aspecto mais primitivo, primogênito do conhecimento da verdade. No entanto, esta ruptura cognoscitiva, vale dizer, essa quebra dos padrões individuais pela imersão do abissal, produz uma ruptura no interesse vital: a visão do todo da vida influi sobre o iniciado de modo a tomá-lo em desprezo pela vida. A culminação do êxtase orgiástico é pois a contradição que emerge da vida como totalidade, e mesmo a sugestão sexual que tais rituais encerram demonstram sua essência contraditória. Isso porque se o falo e os transes das bacantes nuas são conhecidas marcas do culto ao deus, vê-se mesmo a ausência da concretização do ato sexual como a mais latente de suas contradições: enquanto as referências explicitas ao ato sexual tem sua realização nos rituais de fecundidade da deusa Artêmis, as bacantes rechaçam qualquer tipo de relação sexual, no que a castidade do feminino em transe frente à virilidade dos sátiros está de acordo com as representações que se fazem do deus, a um tempo presente e ausente do ritual que se lhe prestam, simultaneamente o produtor do orgasmo e da sua frustração. É esta contradição a essência mesma da sabedoria do deus macho-fêmea, do deus-animal.

APOLO

Parece que os próprios helenos estavam bastante sensíveis a polaridade que se verifica entre Apolo e Dionísio, no que se percebe mesmo certa possibilidade de atributos e aspectos por vezes intercambiáveis, como se vê nos poetas do V século. Esta afinidade natural dá-se na estreita relação que ambos possuem com a sabedoria, com aquela visão divina que a manía revelava aos homens. Tal afinidade, contudo, não esconde a inegável antítese que lhes dá o tom, e que fora muito bem percebida nos tempos modernos por Creuzer, Nietzsche, Rohde e Nilsson, e que diz respeito, acima de tudo, a sua atuação divinatória, como bem Platão fez por descrever no Fedro. Em primeiro lugar, também Apolo traz inúmeras contradições, ele que é ao mesmo tempo o deus da legalidade pacífica da sabedoria e da tomada violenta que repercute na alma de sua Pítia. Se Dionísio é o deus de toda contradição, é ele uma só coisa com Apolo que, por sua vez, é a contradição de Dionísio. Mas a manifestação báquica da sabedoria é coletivista, dá-se em meio ao delírio grupal das bacantes e sátiros ao som das flautas que lhe despertam o frenesi. Aqui, a visão mântica é a visão do próprio deus, e a sua sabedoria não é algo a ele externo, mas a contemplação da impossibilidade, do absurdo e da contradição plenamente real, que compõe o todo do ser, o seu ser. Em Apolo, ao contrário, a sabedoria mântica é pela primeira vez uma oferta do deus, algo externo ao homem que a recebe, e na qual gira a fama de seu oráculo mais famoso em Delfos, sabedoria que é, como uma flecha, lançada a um homem, ao indivíduo que na perda de si comunica em palavras a mensagem ao indivíduo consciente, que lha retém. Seus instrumentos mais tradicionais, o arco e a lira, representam sinteticamente sua atuação divina: o canto produzido pela lira é música sedutora, sonhadora, ilusória, que amansa as bestas e os homens como a música de Orfeu, é, portanto, ilusão que acalma; a flecha lançada pelo arco submete a vítima à morte à distância, enquanto Dionísio, feroz e bestial, devorava de perto sua presa, quase como se com ela viesse a se tornar um. Mas tanto arco como lira são metáforas para seu verdadeiro instrumento: a palavra. Apolo anuncia sua sabedoria, dá aos homens, pelas palavras de sua sacerdotisa possuída. Pela primeira vez a sabedoria se comunica a quem não se embriagou pela manía, Apolo a oferece por instrumentos, quer seja o arco ou a lira, quer seja a palavra dita por sua devota, e desse modo ela mesma, sua sacerdotisa, é um seu instrumento, mas já aqui individual, sem abandonar, assim, a perversidade que o acompanha: o exercício deste poder se dá indiretamente, obscuramente, ao se servir da palavra, algo que não pertence à sabedoria, para então provocá-la, despertá-la no homem que a ouve mas que dela se vê privado, porque a sabedoria divina é propriamente uma visão. A perversidade aqui é dupla: não só o indivíduo que lhe serve de instrumento não compreende as palavras que anuncia, mas também não a compreende o homem consciente que as ouve anunciada, pois que se dá tal anunciação por enigmas, por oráculo. Exige-se um homem intérprete, capaz de examiná-la. Nasce a razão, o lógos individual que ilumina o lógos divino. A natureza da palavra, a que se vê mais adequada para uma ação à distância, a longo prazo, indireta, encerra nova perversidade aos homens: pois que não há um só intérprete, e a um indivíduo concreto que se levante para interpretar as palavras do deus, surge-lhe um oponente, de maneira que as contendas suscitam dúvidas, e a competição pelo conhecimento persiste como a máxima das formas de luta. O lógos é a arma mais letal de Apolo, o deus cuja duplicidade de rosto benévolo e presença terrível configura mesmo a essência da própria arte, como bem intui Nietzsche, e que era para Platão o deus por excelência da manía – pois que manía é mântica, ou seja, arte da revelação, e como arte ela não se manifesta por meio da demência báquica na qual submerge o próprio Dionísio, mas na loucura que mantém o deus como espectador.
Fonte consultada: COLLI, Sabedoria Antiga I.

domingo, 10 de novembro de 2013

Palavras-(á)vidas


Muita gente acredita que está na falta de amor e no egoísmo natural do homem a causa dos constantes desentendimentos que as relações com o outro nos apresentam, quando quase sempre o que há é falta de uma boa capacidade de interpretar o que o outro está dizendo, entendê-lo a partir de si mesmo e não de nós. Quando digo nas minhas aulas que aprender a dominar o português e ser capaz de interpretar um texto são ensinamentos que resultam em transformar-se a si mesmo e a sua forma de existir no mundo, não exagero: a vida humana exige um contato constante com as palavras para não terminar em vexame.

sábado, 2 de novembro de 2013

Comédia da vida privada...


Respeitável público, bem vindo ao show de bizarrices que só o Brasil poderia produzir em um só espaço! Por aqui, artistas militantes contra a censura, anos atrás, agora abrem as portas para o controle de informação sobre as suas lindas e intocadas biografias; os nossos encarecidos políticos oferecem, como resposta ao apelo popular pelas ruas do país, uma mini-reforma política que, e isso não é ironia, proíbe os birutas e outras tantas parafernálias em época de campanha, mas nada falam sobre o que realmente importa. E como se já não bastasse, temos obras para a copa e as olimpíadas sendo feitas às pressas e custando ainda mais do que já custavam - afinal, por aqui sobra dinheiro para trazer médicos de outros países, para sustentar uma boa base política por meio de mensalinhos e mensalões, para deixar de ser um comunista operário e tornar-se um digno e respeitado burguês comunista. Porque, convenhamos, abaixo da linha do Equador só interessa mesmo o dinheiro, seja aquele que um Chico ou um Caetano mendigam, voltando-se contra as biografias não autorizadas, seja aquele que incentiva a depredação e as arruaças como forma de "luta política". Se a comédia na antiguidade já havia mostrado que uma das formas mais eficazes de produzir o riso era realizar inversões de valores e de comportamentos, o exagerado das inversões no Brasil já está deixando o cômico para se tornar trágico.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Um olho na tv, o outro no vizinho


O velho sonho de alguns poucos poderosos em dominar o restante da humanidade parece hoje estar em vias de profunda realização. Isso porque não só as riquezas se aglomeram em mãos cada vez mais reduzidas, como também os meios de controle e disseminação cultural alcançaram níveis nunca dantes imaginados. A um César romano ou a um Gengis Khan sequer ocorreria pensar nas possibilidades que as câmeras, a mídia e a internet hoje disponibilizam para quem se aprouver desses meios - para o benefício de quem mesmo? Nesse contexto, a cultura e os mecanismos de aculturação se tornam decisivos para os intentos de domínio, ou de simples mudança de comportamento, que no fim das contas não deixa de ser uma forma de domínio.
Ainda ontem, o 'Fantástico' - que de fantástico mesmo só tem o nome - apresentou uma 'reportagem' sobre a maneira como as pessoas nas ruas se comportam frente a uma situação privada, em que a mulher tenta impedir que o marido bêbado assuma a direção do carro do casal. Em dois dias de encenação, apenas três pessoas resolveram intervir na situação, e as imagens e comentários sobre inúmeros acidentes de carro, que permearam a reportagem com o intuito nada mascarado de nos sensibilizar, faziam destas três pessoas agentes de transformação social dignos de uma condecoração de cidadãos exemplares.
Exatamente: não resta dúvidas de que a finalidade da 'reportagem' global fora modificar o comportamento das pessoas, a fim de que intervenham elas mesmas como agentes de transformação social. É imprescindível que, segundo aqueles que engendraram a referida 'mensagem educativa', nosso vizinho não tema em ter de intervir em assuntos privados, e que não lhe dizem respeito, tão-somente porque ele deve pensar a partir de agora que isso lhe diz respeito sim. Se a velha propaganda boca a boca é infalível para o mercado, por que não poderíamos também, cada um de nós, exercer as funções públicas contra o desleixo social? O caso que foi apresentado, com risco de morte, serve como um caso-limite para alguns outros casos 'menos mortais' de nosso cotidiano, e que não deixam de requerer a mesma aplicação cidadã.
Na era da vigilância desmedida, os civis são convidados regularmente a exercer em seu dia a dia o papel de vigilantes, acompanhado da antiga crença de que isso é feito para o bem comum. Mas jamais devemos nos esquecer que o 'bem comum' é um eufemismo, que serve para ocultar a parcela da sociedade que realmente ganha com isso. A difícil questão está em saber quem lucra com essa mudança de comportamento na vida social. A mim, não me parece arriscado dizer quem perde: a massa que, iludida pela tv, se vê promovida de seu anonimato a uns parcos quinze minutos de fama. A fama de se comportar politicamente correta, ou antes, como querem que nos comportemos.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Platão e Aristóteles, e a escrita da filosofia


Talvez a filosofia nos tenha mostrado, em sua origem, uma nada casual sobrevivência de textos, que nos trazem uma importante distinção de práticas filosóficas necessárias. Enquanto Platão, preocupado em deixar o mais bem caracterizado possível aquilo que tanto o impactou, nos restos de anos que viveu do V século ao lado de Sócrates, acreditando ser proveitoso e mesmo possível reproduzir em outros seu próprio espanto por aquele saber nascente, nada escreveu sobre si mesmo nem sobre seus pensamentos em forma doutrinal; de Aristóteles, por outro lado, e tendo sido mesmo um escritor reverenciado pela bela forma entre os que leram seus dramas, não nos restaram senão rascunhos e anotações de aula, em uma forma que se insere em algo entre o deselegante e o intragável. Mas para além do fato estilístico que parece ter sido deveras imprescindível a esses grandes filósofos, o destino nos reservou dois modos de preparação ou de produção do saber em um homem de estudos: um exotérico, destinado aos não iniciados, e cujo estilo, no melhor que pode haver da poesia, serve aos fins de despertá-los para o espanto que causa a busca pelo saber; e outro esotérico, aos iniciados na matéria, que serve ou como recordação do que foi trabalhado de modo oral ou como apontamentos para o que o será, mas nunca como algo a ser destinado a quem não tenha ainda sentido o impulso para a filosofia. E não parece que essa lição se perdeu ao longo do tempo?

Nietzsche e eu


Penso haver uma diferença de perspectiva entre o sr. Nietzsche e eu: enquanto vasculho o homem do passado, o discípulo de Zarathustra vislumbrava o do futuro. Será isso, contudo, realmente uma 'diferença'?

sábado, 20 de julho de 2013

Crônica de um manifestante






Até gosto de futebol, apenas jogos internacionais, em que se pode torcer pelo Brasil, em que se vê todo o povo unido ao redor da mesma bandeira, diferentes desses jogos regionais, de nossos partidarismos. Não há partidos quando se pensa no país. Talvez seja isso mesmo que parecem ecoar pelas ruas e redes, essa grande – não muito grande, verdade – essa gente que a partir da virtualidade ganhou a geografia das cidades, os pontos-chave de um país entregue ao descaso de seus governantes, aos gastos excessivos e supérfluos, às mordomias do grande capital e à miséria da gente urbanamente inutilizada. Vejo um grito, ouço seus gestos, sentimos o cheiro das desprezíveis carnes humanas a rastejar em busca de um lugar ao sol, num país naturalmente rico e humanamente pobre, paupérrimo, desgraçado. A desgraça é tamanha que devo fechar o computador. A televisão jaz há muito desligada, inexistente. Sinto por alguma razão que não devo gastar luz nem tempo vendo as imagens que outros querem que eu veja. Luz e tempo – se a primeira me consome dinheiro, o segundo... Bem, sinto que não há muito tempo, para nenhum de nós. Saio todo dia de casa rumo ao trabalho, nada essencial, diria mesmo que insignificante, se não fossem as tantas criaturas que sentem um desejo incontido de cuidar mais de seus cães e gatos que de si mesmas ou de seus parentes. Hoje, porém, chegarei mais tarde em casa. As ruas encontram-se fechadas por uma pequena multidão de homens e mulheres portando faixas, cartazes e brados retumbantes, exigindo de nós, por nós, um país melhor. É possível? Não pergunto se é possível um país melhor, mas se por acaso isto seria possível dessa forma. Alguns acham que não. Próximos aos manifestantes, agora dispersos pelo aparato policial, jovens com a cara coberta depredam lojas e placas, voltam-se contra o ônibus que nos levaria de volta para casa – me levaria de volta para o meu reduto dentro de toda essa podridão. E por que deveria voltar a esconder-me? Por que não descer ali mesmo, juntar minhas forças e minha revolta contra esse mesmo país que degenera a passos largos? Por que não vandalizar? As pessoas ao me redor se desesperam com razão, há ameaças de que o ônibus será quebrado, o motorista está desnorteado. Se conseguimos escapar foi por sorte, talvez pela loucura de uma jovem moça que hasteava sua bandeira, aquela mesma que nos estádios serve para que demonstremos nosso amor pelo país. Saímos com vida. Percebi que a bandeira, a garantia de nossa sobrevivência àquela noite, foi capaz de simbolizar muito mais que um amor à nação em tempos de futebol. Suas cores evitaram as ações preto e branco, os radicalismos de quem pensava menos que se revoltava – e contra o que, contra quem? Dias depois estava ali, o país gritando a vitória na final do futebol, e o grito das ruas aos poucos diminuía, era amortecido, estava cansado. Voltava-se ao trabalho e à vida normal, esperando que algum dia o amor ao país nos tempos de futebol se transformasse no amor ao país nos tempos de cólera, dessa doença contagiosa que oprime e deprime ou que se rebela em violência, em afronta física, esse branco ou preto que perde a própria visão das cores que lhe formam, que lhe serviriam de incentivo para se transformar e transformar o país – em quê? O que se quer? Vê-se mais televisão e navega-se mais pelas redes do que se aprende a viver. Deixarei fechado meu computador e esquecida minha TV, continuarei aqui neste meu reduto, neste esconderijo que chamo de lar, e que me isola e me protege, creio, das barbáries do mundo lá fora, de um país desunido e individualista. E não serei também eu tão egoísta? Reclusão não se traduz, em linguagem social, omissão? Que cidadão pode continuar digno de sua cidade quando dela se aparta por interesse próprio? Não! Preciso agir, dar sentido à vida que esta nação me permite viver! Começarei transformando a mim mesmo, lendo tudo o que eu puder sobre o humano e o divino, sobre a eternidade e a história, sobretudo a nossa história, muito pouco conhecida como o é muito pouco conhecida a história de cada um de nós. O dia em que eu conseguir contar minha própria história e for capaz de inseri-la no tecido maior de minha existência, nas redes inevitáveis que me ligam ao país, à humanidade e ao eterno, no dia em que puder hastear sem necessidade de palavras a bandeira de uma existência digna de viver, então nesse dia o país terá ganhado um seu cidadão honrado, um homem deveras brasileiro, que ao invés de berrar nas ruas e nos estádios, fará ecoar a única voz que não precisa do grito para se fazer ouvir: a voz de uma alma frente a si mesma. Enquanto disso não for capaz, não será nas passeatas ou no futebol que demonstrarei o meu amor ao país. Que se gaste tempo e luz consigo mesmo – pois não se pode sonhar com uma nação valorosa que tenha mais gado que homens.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Assim caminha a humanidade...


Quando Sócrates dizia que "virtude é conhecimento" estava enunciando um principio básico da finalidade última da ação humana: para agir corretamente é preciso ter acesso às informações que lhe dizem respeito. A liberdade no bem agir depende dos dados disponíveis para o homem ponderar a decisão mais acertada, e não poucos são os que acreditam que vivemos em uma época de luzes, livres como nunca, porque temos hoje mais acesso a informações. A que informações? Acreditamos mesmo que nos serão dadas todas as informações importantes para nossa decisão acertada? Não parece, antes, que se faz exatamente um acerto prévio do que são consideradas informações importantes, para levar os homens a decidirem o que querem exatamente aqueles que selecionam o que é importante? A atual situação dos meios de informação nos deixa com uma responsabilidade acachapante, muito pouco perceptível para quem nunca se deu ao trabalho de ir procurar as informações mais justas: o homem comum é deixado à sua própria sorte, dividido entre ter de ganhar a vida com trabalho e estudo, e ter ainda de procurar saber se o que está sendo dito por aí é de fato como se diz. Não me espanta que a maior parte da população, atarefada com sua sobrevivência, deixe o trabalho de se informar para os jornais e a televisão, deixando nas mãos de certas criaturas desconhecidas, ocultas por trás das redações, a responsabilidade de decidirem por elas. Imersas em conquistar um lugar ao sol, ou apenas um dinheiro qualquer ao fim do mês, as almas humanas seguem alienadas daquilo mesmo que as torna humanas, quer dizer, o senso de responsabilidade pelas suas decisões. Nesse ponto estão de acordo a doutrina cristã e o pensamento ateu de Sartre, além do sistema jurídico de que dispomos, para dar um exemplo laico. Antes de estar no trabalho e na luta pela sobrevivência, como gostaria o materialismo de Marx, a formação do homem está na sua consciência decisória, a partir da valoração que faz de si e do mundo que o cerca, e sem a qual pode-se chegar a ganhar o mundo inteiro e perder a própria alma. Ainda assim, pensa o homem comum: "não tenho tempo para pensar!" Esse paradoxo flagrante é tão-somente um eco de outro, bem mais profundo, muito próximo da formulação que o pai da filosofia havia dado a partir da frase que trouxemos no início: se "virtude é conhecimento", então "ninguém comete o mal senão por ignorância", e com isso entendemos melhor a miséria de nossos dias, em que as pessoas preferem ser ignorantes, mesmo que isso lhes custe a existência. Afinal, para que se preocupar com o que acontece? Não é muito mais fácil deixar a vida levar, ouvindo o que se diz por aí? Essa coisa de procurar saber e pensar é coisa de desocupado, há uma vida para ganhar lá fora! Não foi o próprio Sócrates quem disse "só sei que nada sei"? Então, deixa a coisa assim mesmo que se melhorar estraga. De minha parte, faço coro com Lulu Santos: "assim caminha a humanidade, com passos de formiga e sem vontade...", com uma única ressalva: as formigas não fazem senão o que lhes é natural.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Manifestar - o que mesmo?


Os manifestos que tomaram as ruas brasileiras nas últimas semanas, deflagrados pelo aumento, diga-se de passagem abusivo, das passagens de ônibus iniciaram uma onda de protestos populares em vários frontes, desde apelos contra o ato médico e a recusa pela cura gay até uma necessária mudança política no país. Os meios de comunicação, ao veicularem as imagens do movimento, não abrem mão de fazê-lo, contudo, por meio de um foco privilegiado nos atos de grupos extremados, que barbarizam por violência aproveitando-se claramente da situação para infligirem sobre bens e pessoas seus instintos animalescos acumulados. Diante desse quadro duplo, em que se tem de um lado a livre e pacífica manifestação, de outro a baderna selvagem dos tipos mais exaltados, o Estado faz intervir igualmente seu poder, de modo ora pacífico ora selvagem, na medida em que tentam responder aos apelos populares. Mas ao que se está tentando responder mesmo? Se o povo nas ruas parece reverberar uma insatisfação contra o próprio governo, é possível obter alguma resposta positiva de quem só realiza atos negativos? Pode o corruptor responder contra sua corrupção, ou se está aqui, com toda força, a clamar por um "novo" governo?
Desde o instante em que a movimentação popular anunciou que seu apelo "nunca foi pelos R$ 0,20", o foco da afronta se deteve, sobretudo e até onde se pode entendê-la, nos excessos de gastos e na corrupção do governo, no que a realização da atual copa das confederações é também ele um momento oportuno para reivindicar melhorias com visibilidade mundial. Neste processo, pegam carona as muitas lutas pontuais que compõem o grito final pelas ruas, e o alvoroço por melhorias tende, por sua própria dinâmica múltipla regida de um foco comum contrário ao andamento da política atual, a se opor ao governo como um todo, contra qualquer tipo de politicagem. Não é outro o sentimento que movimenta o homem comum quando declara em bom tom ser "apartidário", na tentativa mesmo desesperada de fazer política sem partido. 
Como isso não é possível - claro, nos limites da vida democrática - a voz nas ruas aos poucos deverá optar, drasticamente, por um desfecho triplo e necessário: ou sua voz se filia aos mecanismos partidários de uma vez; ou ela terá de recorrer aos "poderes" sociais paralelos à democracia, formalmente apartidários, como as religiões e as forças armadas (formalmente porque, embora haja presença de indivíduos de ambas as instituições na luta política, esta não lhes é essencial); na hipótese de não se deixar envolver por nenhum desses dois lados, o que lhe sobra é continuar a berrar pelas ruas até que lhe obriguem a se calar, ou até que ela mesma se canse de gritar. A meu ver, esta última opção seria a menos desejável em vista das possibilidades que a luta popular apresenta, e as duas que nos sobram devem ser claramente definidas de maneira a possibilitar uma escolha razoável segundo os objetivos desejados.
Há, contudo, uma quarta via, posta aqui em separado de maneira proposital: a derrubada do governo e todo o seu sistema para a instauração de um regime ditatorial. Platão não deixou de sinalizar este perigo iminente que ronda todo o governo democrático, e quer a tirania seja capitalista ou socialista, ela é o mal que assola as liberdades individuais pela liberdade de um único homem ou grupo - um mal que, gostaria muito, não parece desejável entre as bandeiras de nossas manifestações. Não desejável, porém iminente. A falta de um objetivo comum ao movimento popular é um seu pedido latente em ser cooptado por alguma liderança, e não é outra a postura que se deverá tomar daqui para frente: será preciso forjar uma unidade, ou sucumbir ao domínio de quem a tenha para oferecer, não importando os meios para isso. Enquanto este passo não for dado, a movimentação continuará a ser vista como desabafos em praça pública, que só fazem por aumentar os atos de violência de poucos aproveitadores, sem a mais mínima ideia de onde tudo isso vai dar.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Hesse - Demian


A oposição entre dois lados da alma, entre duas naturezas, e de que maneira o homem é capaz de unificá-las em torno de si mesmo, pode ser dito um tema predominante da literatura de Hesse, e em Demian ele nos oferta mais uma penetrante percepção dessa dicotomia demasiadamente humana. O incômodo que se sente ao perceber esta dicotomia, a luta interna entre ceder à luz ou às trevas, entre dar ouvidos à carne ou ao espírito, e mais ainda, em se perceber a si mesmo como alguém ausente do meio social, como um ser que já não pertence ao coletivo como os demais, mas que fora, por assim dizer, desperto, tomou-se de consciência da fragilidade das relações e da futilidade dos burburinhos sociais, naufragando-se em seu próprio mundo interior, navegando por suas vontades e incômodos, por seus pensamentos e suspiros. Assim é o mundo de Hesse. A resposta encontrada pelo jovem Sinclair, no entanto, não podia dar-se em si sem antes passar pelo outro. E com isso Hesse nos lança fundo na conflituosa experiência de estar consigo mesmo sem poder desprezar os outros de todo. Há uma inevitável implicação do social sobre o íntimo, e dessa vem surgir aquilo que a experiência interna nos mostrará sobre o mundo. A dialética entre o interno e o externo é a essência da consciência angustiada pela existência, que encontra um suspiro de felicidade no pensamento, no vago vislumbre de uma realidade que o transcende. O livro do escritor alemão é pois esse narrar da dialética da existência. Interessante que em uma edição de bolso tenham posto Demian ao lado de Sidarta. Ambos os livros se completam, na vinculação entre oriente e ocidente que induz todo homem perplexo com a realidade a buscar o princípio de transcendência que a compõem e constitui, e sem o qual nós mesmos nada seremos.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Sheherazade e as mil e uma noites - de funk!


Tudo bem que as reportagens na mídia brasileira atual sejam padronizadas, e mais que isso, sejam induzidas com fins ideológicos. Tudo bem que muito antes que informar, a mídia atual, e a brasileira mais que todas, destina-se a (in)formar. Mas caberia perguntar: também não há indução ideológica nas universidades? O recente 'debate' na internet entre a jornalista Rachel Sheherazade e a estudante de mestrado Mariana (popozuda?) Gomes - digo 'debate' apenas para meus próprios fins 'ideológicos' - trouxe a discussão sobre o papel do funk na cultura brasileira, o feminismo a ele ligado e, por tabela, as relações e influências inegáveis de ambos sobre as pobres mentes tupiniquins. Isso porque em meio a um debate verborrágico, em que as palavras são deslocadas de seus contextos, a coisa vira mesmo um baile em que muito pouco ou quase nada se chega a saber se não se fugir de volta à realidade.
No que me caberia alguma posição enquanto estudante de mestrado, não em Cultura e Territorialidades na UFF, (in)felizmente, devo dizer que a cultura é sim hierarquizada, e não poderia ser diferente, dada a possibilidade mesma de ela ser conceituada. Se tudo fosse cultura ou cultural em uma sociedade, não levaria um segundo para alguém notar a ausência completa e instantânea da mesma. A distinção entre coisas é característica inalienável dos sentidos naturais, e no homem esse aspecto abre espaço ao do apreço, ao da valoração. Distinguir coisas para o homem sempre será uma distinção entre bom e ruim, belo e feio, justo e injusto, ainda que se diga o contrário. Distinguir o cultural do não cultural é algo que mesmo nossa estudante de mestrado sabe muito bem fazer, já que cobra conhecimento. E ao cobrar conhecimento da jornalista está demonstrando, ora vejam, a existência de uma hierarquia quanto ao conhecimento, ou antes, entre aqueles que sabem e os que não sabem. Para a senhorita popozuda, como para todo homem de senso, quem conhece algo deve ser melhor no falar sobre algo que aquele que nada sabe.
Pois bem, se a palavra 'cultura' hoje se vê tão desgastada que já não se percebe com clareza as distinções que a diferenciam do que não é cultural, tais problemas de visão, no entanto, não deveriam atingir o espaço da universidade. É papel da universidade a investigação e o ensino voltados para o conhecimento, e o conhecimento acerca do que não se conhece começa sempre pelo que já é conhecido. Este conhecido, cuja função é nortear a investigação, não é assumido na escala hierárquica do conhecimento como um 'clássico'? Se a estudante popozuda teve de ler quatro livros (sic!) para ingresso no mestrado, significa que aos coordenadores do programa tais livros são 'clássicos' para a investigação sobre a cultura - claro, segundo sua própria ideia de cultura. Não seria então muito mais legítimo defender a falta de hierarquia em relação ao conhecimento? Para que ler tais livros, deveria perguntar a estudante, se podemos aprender igualmente com o batidão? A 'desonestidade intelectual' encontra-se exatamente no igualitarismo cultural, que se não tenta rebaixar a alta cultura, intenta elevar o apelo sexual mais imediato ao cume da dignidade cultural, ainda que os dois movimentos acabem dando no mesmo.
Igualar Saramago e Valesca é questionar, no fim das contas, por que é que ainda temos faculdades. Para que, se tudo possui o mesmo valor cultural? Pode-se obter a mesma experiência humana lendo Ensaio sobre a Cegueira e ouvindo Tati quebra-barraco! Bem, a continuar assim, talvez a universidade realmente já não sirva mais para nada. Talvez já não haja mais necessidade de perder meses e meses lendo Machado ou Proust. Talvez já não haja diferença entre livros e enfeites de prateleira. Será neste instante, certamente, que o Brasil descerá de uma vez por todas pelo ralo. E se depender da atual cultura brasileira, sobretudo aquela defendida pela nossa camada dita intelectual, o buraco será ainda mais fundo.

A Rachel, pelo excelente trabalho de voz no deserto, ainda que soe às vezes histérica.

O link para as fontes do 'debate': A reportagem e A resposta

domingo, 21 de abril de 2013

As origens das formas religiosas indo-européias


Do que se pode saber sobre as formas religiosas das comunidades indo-européias tem-se que, basicamente, sua estrutura é pastoril, embora conhecendo a agricultura, cultivando bovinos e cavalos, além de se organizarem tendo em vista sobretudo a posição bélica e conquistadora. Isso se perceber pelas palavras comuns a esses povos, de forte incidência da sua economia nômade e militar. E um dos traços marcantes da cultura e dos processos religiosos indo-europeus é justamente a simbiose, a assimilação e revaloração das culturas e dos processos religiosos das cidades e tribos conquistadas.
Como exemplo, pode-se perceber o processo simbiótico pelo qual provavelmente passaram os povos indo-iranianos. Chamando suas tribos com um nome que significava 'nobre', 'homem nobre' (ária, daí religião ariana e povos arianos), os arianos não demoraram a mitologizar tanto seus adversários, tomados como 'demônios' ou 'feiticeiros', como suas batalhas com estes povos. A ocupação de um novo território dava-se ao erguer um altar de fogo dedicado a Agni, que simbolizava o ritual da Criação. Desse modo, o território dominado, em razão do rito, transformava-se do 'caos' em 'cosmo'.
Outro aspecto fundamental das sociedades indo-européias está na sua estrutura tripartida. Provável reinterpretação das concepções acerca do deus do Céu - Criador, Soberano e Pai - as formas religiosas e sociais dessas comunidades se distinguiam em três classes principais: a dos sacerdotes/juristas, a dos guerreiros e a do homem comum/produtor. A estas três classes correspondia uma tripartição funcional das divindades: os deuses soberanos e legisladores, os guerreiros e protetores e as divindades da fecundidade e da prosperidade, agrícola e pastoril. Em comum à tal tripartição, no entanto, estava a presença do deus do Céu, ou na verdade, do Deus ele mesmo (posto que o termo indo-europeu para 'deus' é o mesmo usado para designar o céu, 'deiwos'; lat. deus, sânsc. devas, iran. div, lituano diewas). Pode-se imaginar que o céu estivesse desde sempre atrelado à concepção do homem primevo acerca do divino, conferindo-lhe aquelas posteriores propriedades tripartidas de Soberano, Criador e Pai.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Hesse - Sidarta


Desde o artista jovem de Joyce ou meu encontro arrebatador com Nietzsche, não havia me identificado de um modo tão inexplicável com uma personagem como aconteceu no caso de Sidarta, da obra monumental de Hesse. O desejo de dar vazão à própria voz, ouvida apenas pelo incômodo interno dos momentos mais angustiosos da existência, é descrito por Hesse com uma finura de sentimento e uma força imaginativa que para mim era impossível não quedar paralisado, absorto, maravilhado. Minha alma estava ali. Era como se as buscas incessantes do protagonista retratassem, do outro lado do mundo, as incessantes travessias que fiz, não de um lugar a outro, mas aqui dentro, em meu ser, num transitar que pouco tem de visível a qualquer um que estivesse ao meu lado. O mundo interno borbulha, enquanto a vida externa segue por vezes pacata, cotidiana, quase sempre monótona. O mergulho interno, vertical, das profundezas até a transcendência, foi e continua sendo meu roteiro de viagens, de descobertas, de experiências. Os percalços de Sidarta em busca do conhecimento, em busca de respostas para sua alma, é a busca que me pervade o ser, o dever ser, o devir. Seu envelhecer na simplicidade da vida realizou, diria mesmo, os influxos teleológicos que me tomam sem deles ter plena consciência. Até agora. Em Sidarta pude vê-los, ver-me o fim, de algum modo premonitório, profético. A sabedoria oriental, ocidental, natural, a reunião do que é humano em poucas palavras, tudo me pareceu deveras divino. O encontro com Hesse, depois ainda em Lobo da Estepe, foi a mais grata surpresa que tive neste início de ano. Uma surpreendente visão de mim mesmo: não mais como um tipo louco ou extravagante, como se costuma dizer, tipo que sequer aparece na literatura machadiana, nossa melhor, e que por isso mesmo foge à possibilidade de compreensão do homem brasileiro. O tipo do homem voltado às questões mais significativas da existência humana é quase sempre incompreendido pelos demais - para tanto, Hesse nos oferece, com extrema habilidade, as grandezas e misérias de uma vida como essa. Uma vida, por assim dizer, filosófica.

domingo, 7 de abril de 2013

Diálogos com a physis VI


- E então, o que tem feito?
- Estudado.
- Ainda não se formou?
- Não é isso, não estudo para me formar...
- Então o quê?
- Então é isso, estudo.
- Pra quê, homem? Quem estuda estuda pra se alfabetizar, não é assim, ou pra passar de ano, ou então pra arrumar trabalho, não é? Pois então, meu velho, pra que estuda?
- Para mim.
- Pra você? Ora não me diga! Você, sempre irônico.
- Não é ironia...
- Mas vai, diz aí, qual é a garota agora? É bonita a guria?
- Quem?
- A mulher que te faz estudar?
- Mas não tem mulher nenhuma!
- Ah, vai lá, não se esconde do teu amigo não, vai! Quem é a rapariga? É gostosa?
- Mas que coisa! Já disse que não tem mulher nenhuma!
- Então o quê?
- O que o quê?
- Pra que estuda?
- Ora essa, não falei: para mim mesmo. Não se lê poesia para nada senão para nós mesmos.
- O que você faz com isso?
- Bem, se você tivesse lido talvez não me fizesse essa pergunta. Mas tudo bem, eu explico: há dois tipos de vida, aquela na qual o homem faz questão de se igualar aos demais, uma vida por assim dizer horizontal, e aquela vida na qual o homem se aprofunda naquilo que o incomoda, se aprofunda na sua existência e nas perguntas que traz dentro de si, uma vida por assim dizer vertical. Entende?
- Sim, como a cruz. Mas o que tem a religião com isso?
- Mas quem falou em religião? Estou falando de nós, do modo como a gente escolhe levar a nossa vida. E a poesia é um tipo de experiência que nos faz levar uma vida vertical.
- Ta vendo, eu sabia!
- O que há?
- Eu sabia que essa coisa de estudo ia acabar te deixando pirado, meu velho! Sai pra lá que isso pega!

domingo, 24 de março de 2013

O vestido das noivas nossas


A morte como espetáculo, como especulação sem sentido, como banalidade. Os sucessivos e recentes casos de morte incisivamente (noticiados?) cobertos pela televisão mostram que Nelson Rodrigues não estava de todo errado quando tratou, em seu palco, a morte como espetáculo banal. Seja no caso da jovem (e milionária) Richthofen, ou da pequena (e indefesa) Nardoni, ou os mais recentes, da srta. Samudio e do sr. Matsunaga, o que há entre todos eles, além das dezenas de outras mortes vistas ou de ouvir falar no cotidiano das comunidades e ruas cariocas e paulistas, é a morte considerada como solução: solução para o amor, para o dinheiro, para o estresse ou para a traição, em cada caso a vida é tida como incômoda, como pedra no caminho - sim, como uma pedra que pode ser chutada ao longe se insiste e persiste em incomodar. Mas uma pedra não tem vida, e de fato é essa a conclusão: a vida é tão pouco importante para nossa sociedade que mais vale diamantes e outras pedras. Afinal, perguntaria um típico tupiniquim moderno, que há de tão diferente assim entre homens e pedras? Uma defesa new age da igualdade entre todos os seres, com uma leve dose de ofensiva indelicadeza em relação ao homem (esse vírus que corrompe e destrói toda a ordem natural), é a tônica do pensamento mais ignorante, e isso em um duplo sentido: porque ignora a vida do outro e a sua própria como importantes e porque, ao ignorar o primeiro, se torna um típico ignorante. Há, e parece que é preciso dizê-lo novamente e outra vez ainda, uma clara diferença entre pedras e homens, uma diferença que, se não nos torna superiores em si mesma, é o primeiro passo para quem desejar superar as mazelas atuais. Tomar consciência, isso uma pedra não pode fazer. Decidir segundo o que vai na consciência, isso uma pedra gostaria muito. Mas se ela não pode fazê-lo, se não lhe cabe decisões pautadas por uma percepção, de si mesma e do todo da realidade que lhe cerca, então só aqui já o espírito de nossa época nos parece insano. Se isso fosse tudo!... O fato de haver pedras no caminho, já dizia Drummond, é apenas o fato de que há uma pedra no meio caminho - e diria mesmo, sempre haverão, para a vida de minhas retinas tão fatigadas, pedras no caminho. Mas que direito temos de lançar fora tais pedras? Que direito há de tratarmos outros transeuntes no caminho como pedras? O niilismo de nosso tempo, tão bem retratado já desde a filosofia de Nietzsche, alcançou seu apogeu nas modas existencialistas e feministas, no absurdo de Camus e dos influxos linguísticos de Derrida. Tudo isso contaminou o solo brasileiro, que viu intensificar ainda mais aquilo que 22, o movimento par excellence da ausência de normas e padrões tradicionais na arte, simbolizou: seu ingresso, diga-se, demasiado tardio, na modernidade. Só na arte? Não há nada que ocorra na vida social que já não esteja antes fulgurante na sua literatura. Nelson é disso testemunha. Se o apelo à modernidade na arte foi a atmosfera em meio à qual nasceu seu teatro, a vida que seguiu retradada nos palcos, e que hoje vale a pena ver de novo, como Vestido de Noiva, é a vida banal, fugaz e inútil - não de si mesmo apenas, mas sobretudo do outro. Matava-se nos palcos por amor, por dinheiro, por traição, e hoje por isso e por estresse ou dor de ouvido. Pouco importa. Se o inferno são os outros, como Sartre encenava, então que se dane os outros. Matar todos, exterminar o vírus que consome a perfeição das ruas, das casas e de nossas camas: eis o remédio para uma sociedade de pedras. E não se tornaria menos cômico, se não fosse trágico, ver que uma pedra como o crack tem colocado em evidência todo esse espetáculo, dos palcos para a vida.

domingo, 10 de março de 2013

Deusas e Mulheres


Costuma-se entender a mitologia dos gregos como fruto do seu espírito de síntese - quer dizer, como a história do modo pelo qual os gregos absorveram os deuses outros de cidades conquistadas e lhes transformaram as notícias a ponto de ilustrarem aspectos próprios à sua vivência e personalidade. Nesse sentido, o catálogo que a Grécia nos oferecera acerca dos aspectos humanos tornou-se um legado imprescindível para a formação do imaginário de possibilidades humanas, tendo em vista que nenhuma outra cultura e civilização se debruçou com maior afinco e sagacidade sobre o espírito humano que os gregos.
São as deusas olímpicas principais, Hera, Atenas, Ártemis e Afrodite, um pequeno, mas de nenhum modo insuficiente, catálogo de tipos humanos femininos, ou antes, de quatro aspectos de manifestação do feminino em sua natureza particular. Na medida em que os helenos agruparam sua forma de compreender a mulher nessas quatro divindades supremas, podemos observá-las como projetos de síntese de potencialidades femininas. Vejamos, pois, o que os gregos nos têm a dizer sobre tais potencialidades.

Afrodite

É a deusa do amor a mais selvagem das divindades, ligada ao apelo e instinto sexual e à sua sacralidade. Com Afrodite, o grego tentou sintetizar a imagem ou o aspecto animalesco do desejo sexual feminino, sua inevitável influência sobre o homem, com as artimanhas de sedução, os recursos espirituais do amor, próprios da mulher. O que ela exalta, inspira e protege é o amor físico e a união carnal, e nesse sentido, seu aspecto de verdadeira senhora das feras, que infunde desejo nos homens e faz até Zeus perder a razão pode servir como expressão religiosa da incrível força sexual que atropela, inexoravelmente, bestas, homens e deuses. Não se deixa de entrever aqui o tipo de mulher fatal, disposta ao prazer a qualquer custo, disposta ainda a usufruir de tal prazer como poder, como meio de dominação, como auto-afirmação. O caráter de certo modo selvagem de Afrodite denuncia a pecepção que tinha o grego desse tipo de disposição feminina: inevitável por um lado e, talvez por esse motivo, baixa e desumana, por outro. É ilustrativo desse aspecto a cena em que Hefesto, seu marido, a captura ao lado do amante Ares e a toma por amostra de uma união vergonhosa. Definitivamente, Afrodite não participa da possibilidade de ser fiel a homem qualquer.

Hera

A esposa de Zeus sintetiza, para o grego, a percepção de uma dimensão feminina própria à fertilidade e sacralidade do matrimônio. Hera é a deusa por excelência do casamento, e por ele sofre suas mazelas e vê usufruir seus prazeres. Tanto os prazeres quanto as mazelas se devem ao marido, Zeus, e seu ímpeto por assim dizer acasalador, que tendo se unido a uma mulher não se vê irrefreável frente a outras. Os percalsos que sofre a esposa suprema, desde agressões físicas até o vexame público, em nada lhe demovem da ideia do matrimônio. Vê-se a todo momento Hera sustentando sua posição de mulher, de esposa, de senhora, e nesta posição ela repreende o marido, na medida em que lhe consente os abusos, mas acima de tudo se pôe em ofensiva contra as amantes, a expressão maior de um tipo de mulher que cede aos caprichos masculinos sem se importar com o aspecto familiar em que tal homem se vê inserido. Por ser a imagem típica da união entre um deus fecundador da tempestade e a terra-mãe, Hera deixa-nos entrever o caráter da mulher que reconhece a fraqueza masculina e a supera em favor da união que produz a vida, em favor da família e do casamento que é o símbolo dessa produção.

Ártemis

Considerada a senhora das feras, Ártemis é a síntese da bestialidade e da graciosidade femininas. A mais complexa e contraditória das deusas, devido justamente à misteriosa confluência de dois aspectos por assim dizer antagônicos da alma feminina em sua própria divindade, Ártemis representa a força independente da mulher, vinculada ao seu apelo mais radical: a castidade por excelência. Sua virgindade é tomada entre gregos ora como uma libertação do jugo matrimonial, de que padecem Hera e Afrodite, ora como uma sua decisiva indiferença em relação às coisas do amor. É bastante conhecida, neste ponto, sua frigidez enquanto mulher, o que se refletia no ódio que nutria francamente por Afrodite. No entanto, e dentro de sua simbologia contraditória, há inúmeros sinais em Ártemis de uma deusa-mãe, cuidadora dos jovens e das donzelas no parto. Era a um só tempo padroeira dos caçadores e das moças casadouras, mas em ambos os casos, era louvada e reverenciada pelo caráter de independência próprio à vida selvagem. A mulher do tipo de Ártemis está deixada em sua selvagem solidão feminina, que muito pouco se faz compreendida e menos ainda se vê interessada em manter relações com o sexo oposto, senão nos casos em que possa desempenhar claro papel de mãe sem o ser de verdade. O casamento, não sendo próprio da vida selvagem e natural, não poderia lhe pertencer.

Atena

Temos, por fim, a deusa mais importante e mais reverenciada pelos gregos, depois de Hera. Atena tem como que sintetizadas em sua figura mítica o princípio da independência selvagem feminina, como o foi Ártemis, sem negar uma relação com o sexo oposto, não regida pelo matrimônio, como em Hera, o que faria por contrariar seu princípio de independência, nem pela sedução, como em Afrodite, mas por situações de aprendizagem e conflito. Considerando os homens como aqueles que, por excelência, estão entregues ao combate e ao saber, Atena se vê investida de uma personalidade capaz de se equiparar ao masculino, com a exceção do casamento, pondo-se claramente como força de combate marcial (ela vence Ares e admira Héracles) e intelectual. Neste último caso, e talvez o seu mais significativo, Atena é tida por amiga da sabedoria e da habilidade intelectual, e chega a ter Odisseu em grande admiração. Por não ter sido gerada de mãe, construiu forte laço de união com seu pai, Zeus, de quem sempre estava ao lado - seu nascimento deu-se diretamente da cabeça de Zeus, que lhe deu a métis, a sabedoria prática, como seu maior atributo. É nela que se revelam a complexidade e a unidade da sabedoria técnica grega, que fez a sociedade contituir-se e se aperfeiçoar. Por tudo isso, pode-se perceber porque razão Atena era tida em alta conta pelos gregos, sobretudo pelos homens, que lhe temiam ao mesmo tempo que lhe reverenciavam o saber e a habilidade marcial, suas próprias habilidades. E certamente a tinham em alta conta por lhes assemelhar tanto, no que Atena se torna para nós o tipo feminino exemplar da independência almejada pelo feminismo moderno.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

O fundamental na vida II


Vivemos, e estar vivo é ser constante e avassaladoramente atravessado por preocupações de toda natureza, por incômodos, angústias que podem se resumir a um sofrimento humano substancial, a um sofrer com as urgências de coisas que sabemos, no mais íntimo, serem fúteis, pueris, etéreas, e ainda assim desejá-las, não se sabe bem por quê. E qual não seria o propósito de todas essas preocupações dispersantes senão uma capacidade de focar, uma atenção integrante, que nos faz perpassar o sofrimento da vida com a fina certeza de sermos algo, sermos alguém que sofre? A atenção é a atividade humana mais digna, mais elevada, e por isso mais difícil - khalepós tà kalá: difíceis (são) as coisas belas, como diziam os gregos. Ter ciência da prioridade de um comportamento atencional, não disperso em meio às preocupações, e realizá-lo pode se traduzir no caminho que nos conduz até o nosso Eu imortal.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

O fundamental na vida


Há dois tipos básicos de modo de vida: um dissolvente, outro integrante. Por serem um estilo de vida cujo fruto remonta aos tipos básicos de pensamento, todo homem em algum momento já provou de ambos os modos, sem talvez ter se dado conta disso. Mas para além de provar, um modo de vida é uma escolha. E ai entende-se que uma consciência vívida que perceba as nuances de cada um dos estilos é o primeiro passo para qualquer decisão mais profunda.

O que sobrou da religião


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 12 de maio de 2010
Se há neste mundo um fato bem comprovado, é a percepção extra-sensorial durante o estado de morte clínica. Um corpo inerte, sem batimentos cardíacos ou qualquer atividade cerebral, desperta de repente e descreve, com riqueza de detalhes, o que se passava durante o seu transe, não só no quarto onde jazia, mas nos outros aposentos da casa ou do hospital, que de onde estava ele não poderia ver nem se estivesse acordado, bem de saúde e com os olhos abertos. Isso já se repetiu tantas vezes, e foi atestado por tantas autoridades científicas idôneas, que só um completo ignorante na matéria pode teimar em permanecer incrédulo. Mas mesmo alguns daqueles que reconhecem a impossibilidade de negar o fato relutam em tirar a conclusão que ele impõe necessariamente: os limites da consciência humana estendem-se para além do horizonte da atividade corporal, inclusive a do cérebro. A relutância em aceitar isso mostra que o “homem moderno” – o produto da cultura que herdamos do iluminismo – se identificou com o seu corpo ao ponto de sentir-se amedrontado e ofendido ante a mera sugestão de que sua pessoa é algo mais. É evidente que aí não se trata só de uma convicção, de uma idéia, mas de um transe auto-hipnótico incapacitante, de um bloqueio efetivo da percepção.
Esse estado é implantado nas almas pela tremenda pressão anônima da coletividade, que as mantém em estado de atrofia espiritual mediante a ameaça do escárnio e o temor – imaginário, mas nem por isso menos eficiente – da exclusão. Infinitamente multiplicado e potencializado pelo sistema educacional e pela a mídia , o que um dia foi mera idéia filosófica, ou pseudofilosófica, incorpora-se nas personalidades individuais como reflexo de autodefesa e, na mesma medida, restringe a autopercepção de cada qual ao mínimo necessário para o desempenho nas tarefas imediatas da vida socio-econômica. É tudo uma profecia auto-realizável: se a evidência avassaladora da percepção extracorporal é negada, não é só porque as pessoas não acreditam nela – é porque se tornaram realmente incapazes de vivenciá-la de maneira consciente. Vivem alienadas da sua experiência psíquica mais profunda e constante, encerradas num círculo de banalidades no qual o triunfalismo “cultural” e “científico” da mídia popular infunde uma ilusão de riqueza e variedade.
O “mundo real” no qual essas pessoas acreditam viver é o dualismo galilaico-cartesiano, já totalmente desmoralizado pela física de Einstein e Planck, mas que a mídia e o sistema escolar continuam impondo à alma das multidões como verdade definitiva: tudo o que existe nesse mundo são as “coisas físicas” e, em cima delas, o “pensamento humano”, as “criações culturais”. De um lado, a realidade dura da matéria regida por leis supostamente inflexíveis, nas quais se fundamenta a autoridade universal e inquestionável da “ciência”; de outro, a pasta mole e dúctil do “subjetivo”, do arbitrário, onde toda opinião vale o mesmo. Dessa esfera “subjetiva” faz parte a “religião”, que é o direito de crer no que bem se entenda, com a condição de não proclamá-lo jamais verdade objetiva ou valor universal.
Nessas condições, o próprio exercício da religião torna-se uma caricatura grotesca. Tanto quanto o ateu, o homem religioso de hoje em dia acredita piamente na existência de uma esfera material autônoma, regida por leis próprias que a ciência enuncia, só de vez em quando rompidas pela interferência do “milagre”, do “inexplicável”, do “divino”. Por mais que a filosofia esculhambe com o “Deus dos hiatos” (aquele que só age por entre as brechas do conhecimento científico), ele é o único que restou no altar das multidões de crentes. Oficializada pelo establishment governamental, universitário e midiático, a rígida separação kantiana de “conhecimento” e “fé” tornou-se verdade de evangelho para a maioria das almas religiosas, embora ela seja, em si, perfeitamente herética à luz da doutrina católica, interpondo um abismo infranqueável entre dimensões cuja interpenetração, ao contrário, é a própria essência da concepção cristã do cosmos. É novamente a profecia auto-realizável em ação: à percepção mutilada do eu individual corresponde uma religião mutilada, e vice-versa.
Quando digo percepção mutilada, estou afirmando, taxativamente, que a imagem do eu como algo que reside no corpo ou se identifica com ele é fantástica, ilusória, doente. Ela impõe à consciência limitações que não são de maneira alguma naturais, muito menos necessárias. Todas as tradições espirituais do mundo, todas as disciplinas sapienciais começam pela constatação óbvia de que o eu não é o corpo, não “está” no corpo mas de certo modo o abrange como o supra-espacial transcende e abrange o espacial (este é balizado por certas relações matemáticas que, em si, não estão em parte alguma do espaço). Mas uma coisa é compreender isso por pura lógica, outra bem melhor é poder constatá-lo no fato vivo da percepção extra-sensorial em casos de morte clínica. Bastaria, a rigor, um único episódio desse tipo para dar por terra com a balela de que o cérebro, isto é, o corpo, “cria” a cognição, o pensamento, a consciência. Mas os episódios são milhares, e o desinteresse dos crentes por esse tipo de fenômenos (mais estudados por ateus, adeptos da New Age e budistas do que por católicos, protestantes, ou mesmo judeus crentes) denota que a mente religiosa já se conformou com um estado de existência diminuída, em que a alma supracorporal, condição fundamental do acesso a Deus, só passará a existir no outro mundo, por alguma transmutação mágica da psique corporal, em vez de constituir já nesta vida a nossa realidade pessoal mais concreta, mais substantiva e mais verdadeira, presente e atuante nos nossos atos mais mínimos como nas nossas vivências mais elevadas e sublimes.
Durante milênios cada ser humano, ao pronunciar a palavra “eu”, referia-se de maneira imediata e automática à sua alma imortal, a única que podia orar e responder por seus próprios atos ante o altar da divindade. Dessa alma, a psique corporal era uma parte e função menor, voltada ao meio material e social tão-somente, alheia a todo senso do eterno e, a rigor, incapaz de pecado ou santidade, apenas de delitos e virtudes socialmente reconhecidos. A partir do momento em que a psique corporal foi assumida como realidade autônoma, cada indivíduo só se enxerga a si mesmo como membro de uma espécie animal e como “cidadão”, amputado daquela dimensão que fundamenta o senso último de responsabilidade e cultivando, em lugar dele, o mero instinto da adequação social, adornado ou não de “moral religiosa”. Imaginem a diferença que isso faz, por exemplo, na compreensão que você tem da Bíblia: se você não a lê com sua alma imortal, talvez fosse melhor não lê-la de maneira alguma, porque a lê com a carne e não com o espírito.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Romance e vida


A literatura, a escrita de ordem poética e romântica, mais no romance que na própria poesia, como sempre foi mais na prosa que nos versos, é a linguagem mais complexa que temos para descrever, pensar e elaborar realidades complexas. A linguagem tratadística e científica não poderia dar conta, por exemplo, de elaborar sobre a complexidade da vida humana de um indivíduo que seja. Nem mesmo um romance que o descreva poderia dar conta de uma realidade tão complexa quanto uma vida humana - mas já aqui podemos aspirar a alguma melhor aproximação. O romance é a linguagem mais elevada da experiência humana, e ler romances deveria ser a primeira obrigação moral de todo indivíduo. Mas há alguém hoje que tenha ouvidos para ouvir obrigações morais? Não somos a geração crescida sob os influxos da "liberdade" existencialista vivenciada como libertinagem por Woodstock? Não somos bem mais sensíveis a ouvir a vós que prega um homem "além do bem e do mal", sem moral e quaisquer outras formas de tolhimento? Abandonamos a linguagem a um só tempo concreta e universal da literatura pelo abstratismo das ciências e espiritualidades modernas, e perdemos com isso aquela mesma elevação que o homem comum observava no cair de uma folha. Hoje já não vemos mais folhas caírem como antigamente.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Homem mercadoria


Ao ser perguntado que natureza encontrou nos homens em todos os lugares, o viajante que viu muitos países e povos e vários continentes respondeu: eles têm uma propensão à preguiça. Alguns acharão que ele teria respondido com mais justeza e razão: todos são timoratos. Eles se escondem atrás de costumes e opiniões. No fundo, todo homem sabe muito bem que não vive no mundo senão uma vez, na condição de único, e que nenhum acaso, por mais estranho que seja, combinará pela segunda vez uma multiplicidade tão diversa neste todo único que se é: ele o sabe, mas esconde isso como se tivesse um remorso na consciência - por quê? Por medo do próximo que exige esta convenção e nela se oculta. Mas o que obriga o indivíduo a temer o seu vizinho, a pensar e a agir como animal de rebanho e não se alegrar consigo próprio? Em alguns muito raros, talvez o pudor. Mas na maioria dos indivíduos, é a indolência, o comodismo, em suma, esta propensão à preguiça da qual falava o viajante. Ele tem razão: os homens são ainda mais preguiçosos do que timoratos e temem antes de tudo os aborrecimentos que lhes seriam impostos por uma honestidade e uma nudez absolutas. Somente os artistas detestam este andar negligente, com passos contados, com modos emprestados e opiniões postiças, e revelam o segredo, a má-consciência de cada um, o princípio segundo o qual todo homem é um milagre irrepetível; somente eles se atrevem nos mostrar o homem tal como ele propriamente é, e tal como ele é único e original em cada movimento dos seus músculos, e mais ainda, que ele é belo e digno de toda consideração segundo a estrita coerência da sua unicidade, que ele é novo e incrível como todas as obras da natureza e de maneira nenhuma tedioso. Quando o grande pensador despreza os homens, é a preguiça destes que ele despreza, pois é ela que dá a eles o comportamento indiferente das mercadorias fabricadas em série, indignas de contato e ensino. O homem que não quer pertencer à massa só precisa deixar de ser indulgente consigo mesmo; que ele siga a sua consciência que lhe grita: "Sê tu mesmo! Tu não és isto que agora fazes, pensas e desejas".

By Nietzsche, in Schopenhauer Educador (tradução N. C. de M. Sobrinho, ed. Loyola)

Religare, Religere, Relegere


As religiões, se observadas em sua multiplicidade, ilustram aspectos propriamente humanos na relação que estabelecem com Deus, e neste sentido ilustram possibilidades de vida humana. Quero dizer, cada religião é uma realização de certa possibilidade humana em criar um vínculo de ligação com o Soberano, o Ser Supremo, e na medida em que realizam esta possibilidade, conferem aos homens um determinado tipo de existência a ser vivida, que diga respeito às concepções acerca do divino. Para nós, homens modernos, que nos situamos como que na defensiva, numa espécie de desconfiança com relação às experiências religiosas que por nós são observadas a partir de uma perspectiva histórica e psicológica - nós, homens modernos, quase que "científicos" no pior sentido do termo, no sentido que hoje se utiliza para nomear uma classe que nada faz senão particionar a realidade em busca de "verdades mercantilizáveis": sim, nós homens científicos estamos em grande parte alimentando uma defesa, louvada por ser "racional", também esta no pior sentido, contra o engano religioso, e nos privamos de nos beneficiarmos de uma relação, de um religare com o Ser Supremo seja por que caminho nos diga melhor, nos pareça melhor. As religiões são modos de os homens perceberem os muitos caminhos que se pode trilhar até Deus, e talvez, caminhos que Deus trilhou até nós. Cada religião potencializa um tipo de vida em contato com o divino. Mas o que somos nós, modernos, sem um caminho? Se a modernidade se exalta por ceder à razão, não há como não trilhar um caminho por uma negação de que Deus não existe. A crença em Deus não é objeto de fé, mas de razão, e todo aquele que acha poder afirmar a inexistência de Deus racionalmente padece do mal de que anseia livrar-se. A razão nos mostra Deus, de maneira que o homem moderno, por achar que não cede a uma crença pela liberdade que lhe dá a razão, vê-se perdido ao afirmar, pelo uso da razão e da liberdade, aquela mesma crença que pensou negada racional e livremente. Não há outro caminho, e isto quer dizer: devemos encontrar o nosso caminho. As grandes religiões da humanidade nos dão as possibilidades: religar, reler, reeleger.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Conan Doyle - Sherlock Holmes


O que mais me fascina nas histórias policiais do Sir. Arthur Conan Doyle são menos os crimes que a mente perspicaz que se põe a resolvê-los. Sherlock Holmes condensa em sua personalidade a simplicidade e genialidade que um homem qualquer pode possuir, se fizer da observação minuciosa de seus interesses a base de todos os raciocínios que produzir. O maior dos detetives de fato interessava-se por crimes: a menor ausência deles era ceder desgraçadamente à inércia e atrofia mental. Seus pensamentos funcionavam quando estava diante do desafio, diante do mistério a ser revelado, e apenas isso poderia explicar-lhe aquilo que o próprio narrador, seu amigo Watson, não podia entender: a vontade de conhecimento. Sherlock Holmes é em uma certa medida o protótipo do filósofo, com alguma atmosfera de modernidade e um tanto de vida comum, como a de seus concidadãos, a não ser por uma diferença, a de que sua vida se tornava incomum quando posto a desvendar os mistérios que assolavam sua mente. No caso de Holmes eram os crimes - e em cada um de nós há um mistério a ser revelado, alguma coisa por descobrir que nos pareça interessar sobremaneira e nos mover, quase que anormalmente, genialmente, para satisfazê-la. A vontade de conhecimento não é um mal em si, mas o primeiro acesso que temos ao desconhecido que nos puxa para uma relação com ele, e esse frequentar o desconhecido é a base mesma de todo conhecer. E conhecer é ter se doado, o mínimo que seja, à imensidão do mundo que anseia por se fazer presente em nós. Por meio dos crimes, Holmes alcançava uma força descomunal para avançar conhecimentos e percepções que muitos em sua vida comum não teriam ou perceberiam, e por meio dessa vontade ele se tornou incomum, anormal, e por que não dizê-lo, genial. Se isso é melhor que a vida comum? Bem, ao menos a partida de Holmes dessa vida ou para a morte eterna ou para uma outra vida além dessa foi precedida de uma especial vivência nesse mundo, o que significa dizer, ele em seu ímpeto de saber acabou por experimentar a gratificação por haver conhecido algo dessa existência, o mínimo que seja, e ter podido ajudar outros, senão a verem a vida como ele, ao menos se beneficiarem de seus dotes em resolver os crimes. Mas como? Não foi Holmes um mero personagem? E o que seremos nós, meu amigo, depois da morte, senão apenas isso, personagens na boca e na memória dos que restaram? Holmes é um paradigma, um modelo, e já aqui não dos filósofos apenas, mas de toda vida que merece ser vivida: a vida que é vivenciada como um mergulho no mistério que nos impressiona, que nos incomoda, que nos puxa, até que percebamos que a graça não está em deixar a vida levar, mas em vivenciá-la com toda força em busca de sua própria realização no conhecer a si mesma.