Por que estas pulsões ocêanicas?

Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?

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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.

domingo, 24 de março de 2013

O vestido das noivas nossas


A morte como espetáculo, como especulação sem sentido, como banalidade. Os sucessivos e recentes casos de morte incisivamente (noticiados?) cobertos pela televisão mostram que Nelson Rodrigues não estava de todo errado quando tratou, em seu palco, a morte como espetáculo banal. Seja no caso da jovem (e milionária) Richthofen, ou da pequena (e indefesa) Nardoni, ou os mais recentes, da srta. Samudio e do sr. Matsunaga, o que há entre todos eles, além das dezenas de outras mortes vistas ou de ouvir falar no cotidiano das comunidades e ruas cariocas e paulistas, é a morte considerada como solução: solução para o amor, para o dinheiro, para o estresse ou para a traição, em cada caso a vida é tida como incômoda, como pedra no caminho - sim, como uma pedra que pode ser chutada ao longe se insiste e persiste em incomodar. Mas uma pedra não tem vida, e de fato é essa a conclusão: a vida é tão pouco importante para nossa sociedade que mais vale diamantes e outras pedras. Afinal, perguntaria um típico tupiniquim moderno, que há de tão diferente assim entre homens e pedras? Uma defesa new age da igualdade entre todos os seres, com uma leve dose de ofensiva indelicadeza em relação ao homem (esse vírus que corrompe e destrói toda a ordem natural), é a tônica do pensamento mais ignorante, e isso em um duplo sentido: porque ignora a vida do outro e a sua própria como importantes e porque, ao ignorar o primeiro, se torna um típico ignorante. Há, e parece que é preciso dizê-lo novamente e outra vez ainda, uma clara diferença entre pedras e homens, uma diferença que, se não nos torna superiores em si mesma, é o primeiro passo para quem desejar superar as mazelas atuais. Tomar consciência, isso uma pedra não pode fazer. Decidir segundo o que vai na consciência, isso uma pedra gostaria muito. Mas se ela não pode fazê-lo, se não lhe cabe decisões pautadas por uma percepção, de si mesma e do todo da realidade que lhe cerca, então só aqui já o espírito de nossa época nos parece insano. Se isso fosse tudo!... O fato de haver pedras no caminho, já dizia Drummond, é apenas o fato de que há uma pedra no meio caminho - e diria mesmo, sempre haverão, para a vida de minhas retinas tão fatigadas, pedras no caminho. Mas que direito temos de lançar fora tais pedras? Que direito há de tratarmos outros transeuntes no caminho como pedras? O niilismo de nosso tempo, tão bem retratado já desde a filosofia de Nietzsche, alcançou seu apogeu nas modas existencialistas e feministas, no absurdo de Camus e dos influxos linguísticos de Derrida. Tudo isso contaminou o solo brasileiro, que viu intensificar ainda mais aquilo que 22, o movimento par excellence da ausência de normas e padrões tradicionais na arte, simbolizou: seu ingresso, diga-se, demasiado tardio, na modernidade. Só na arte? Não há nada que ocorra na vida social que já não esteja antes fulgurante na sua literatura. Nelson é disso testemunha. Se o apelo à modernidade na arte foi a atmosfera em meio à qual nasceu seu teatro, a vida que seguiu retradada nos palcos, e que hoje vale a pena ver de novo, como Vestido de Noiva, é a vida banal, fugaz e inútil - não de si mesmo apenas, mas sobretudo do outro. Matava-se nos palcos por amor, por dinheiro, por traição, e hoje por isso e por estresse ou dor de ouvido. Pouco importa. Se o inferno são os outros, como Sartre encenava, então que se dane os outros. Matar todos, exterminar o vírus que consome a perfeição das ruas, das casas e de nossas camas: eis o remédio para uma sociedade de pedras. E não se tornaria menos cômico, se não fosse trágico, ver que uma pedra como o crack tem colocado em evidência todo esse espetáculo, dos palcos para a vida.

domingo, 10 de março de 2013

Deusas e Mulheres


Costuma-se entender a mitologia dos gregos como fruto do seu espírito de síntese - quer dizer, como a história do modo pelo qual os gregos absorveram os deuses outros de cidades conquistadas e lhes transformaram as notícias a ponto de ilustrarem aspectos próprios à sua vivência e personalidade. Nesse sentido, o catálogo que a Grécia nos oferecera acerca dos aspectos humanos tornou-se um legado imprescindível para a formação do imaginário de possibilidades humanas, tendo em vista que nenhuma outra cultura e civilização se debruçou com maior afinco e sagacidade sobre o espírito humano que os gregos.
São as deusas olímpicas principais, Hera, Atenas, Ártemis e Afrodite, um pequeno, mas de nenhum modo insuficiente, catálogo de tipos humanos femininos, ou antes, de quatro aspectos de manifestação do feminino em sua natureza particular. Na medida em que os helenos agruparam sua forma de compreender a mulher nessas quatro divindades supremas, podemos observá-las como projetos de síntese de potencialidades femininas. Vejamos, pois, o que os gregos nos têm a dizer sobre tais potencialidades.

Afrodite

É a deusa do amor a mais selvagem das divindades, ligada ao apelo e instinto sexual e à sua sacralidade. Com Afrodite, o grego tentou sintetizar a imagem ou o aspecto animalesco do desejo sexual feminino, sua inevitável influência sobre o homem, com as artimanhas de sedução, os recursos espirituais do amor, próprios da mulher. O que ela exalta, inspira e protege é o amor físico e a união carnal, e nesse sentido, seu aspecto de verdadeira senhora das feras, que infunde desejo nos homens e faz até Zeus perder a razão pode servir como expressão religiosa da incrível força sexual que atropela, inexoravelmente, bestas, homens e deuses. Não se deixa de entrever aqui o tipo de mulher fatal, disposta ao prazer a qualquer custo, disposta ainda a usufruir de tal prazer como poder, como meio de dominação, como auto-afirmação. O caráter de certo modo selvagem de Afrodite denuncia a pecepção que tinha o grego desse tipo de disposição feminina: inevitável por um lado e, talvez por esse motivo, baixa e desumana, por outro. É ilustrativo desse aspecto a cena em que Hefesto, seu marido, a captura ao lado do amante Ares e a toma por amostra de uma união vergonhosa. Definitivamente, Afrodite não participa da possibilidade de ser fiel a homem qualquer.

Hera

A esposa de Zeus sintetiza, para o grego, a percepção de uma dimensão feminina própria à fertilidade e sacralidade do matrimônio. Hera é a deusa por excelência do casamento, e por ele sofre suas mazelas e vê usufruir seus prazeres. Tanto os prazeres quanto as mazelas se devem ao marido, Zeus, e seu ímpeto por assim dizer acasalador, que tendo se unido a uma mulher não se vê irrefreável frente a outras. Os percalsos que sofre a esposa suprema, desde agressões físicas até o vexame público, em nada lhe demovem da ideia do matrimônio. Vê-se a todo momento Hera sustentando sua posição de mulher, de esposa, de senhora, e nesta posição ela repreende o marido, na medida em que lhe consente os abusos, mas acima de tudo se pôe em ofensiva contra as amantes, a expressão maior de um tipo de mulher que cede aos caprichos masculinos sem se importar com o aspecto familiar em que tal homem se vê inserido. Por ser a imagem típica da união entre um deus fecundador da tempestade e a terra-mãe, Hera deixa-nos entrever o caráter da mulher que reconhece a fraqueza masculina e a supera em favor da união que produz a vida, em favor da família e do casamento que é o símbolo dessa produção.

Ártemis

Considerada a senhora das feras, Ártemis é a síntese da bestialidade e da graciosidade femininas. A mais complexa e contraditória das deusas, devido justamente à misteriosa confluência de dois aspectos por assim dizer antagônicos da alma feminina em sua própria divindade, Ártemis representa a força independente da mulher, vinculada ao seu apelo mais radical: a castidade por excelência. Sua virgindade é tomada entre gregos ora como uma libertação do jugo matrimonial, de que padecem Hera e Afrodite, ora como uma sua decisiva indiferença em relação às coisas do amor. É bastante conhecida, neste ponto, sua frigidez enquanto mulher, o que se refletia no ódio que nutria francamente por Afrodite. No entanto, e dentro de sua simbologia contraditória, há inúmeros sinais em Ártemis de uma deusa-mãe, cuidadora dos jovens e das donzelas no parto. Era a um só tempo padroeira dos caçadores e das moças casadouras, mas em ambos os casos, era louvada e reverenciada pelo caráter de independência próprio à vida selvagem. A mulher do tipo de Ártemis está deixada em sua selvagem solidão feminina, que muito pouco se faz compreendida e menos ainda se vê interessada em manter relações com o sexo oposto, senão nos casos em que possa desempenhar claro papel de mãe sem o ser de verdade. O casamento, não sendo próprio da vida selvagem e natural, não poderia lhe pertencer.

Atena

Temos, por fim, a deusa mais importante e mais reverenciada pelos gregos, depois de Hera. Atena tem como que sintetizadas em sua figura mítica o princípio da independência selvagem feminina, como o foi Ártemis, sem negar uma relação com o sexo oposto, não regida pelo matrimônio, como em Hera, o que faria por contrariar seu princípio de independência, nem pela sedução, como em Afrodite, mas por situações de aprendizagem e conflito. Considerando os homens como aqueles que, por excelência, estão entregues ao combate e ao saber, Atena se vê investida de uma personalidade capaz de se equiparar ao masculino, com a exceção do casamento, pondo-se claramente como força de combate marcial (ela vence Ares e admira Héracles) e intelectual. Neste último caso, e talvez o seu mais significativo, Atena é tida por amiga da sabedoria e da habilidade intelectual, e chega a ter Odisseu em grande admiração. Por não ter sido gerada de mãe, construiu forte laço de união com seu pai, Zeus, de quem sempre estava ao lado - seu nascimento deu-se diretamente da cabeça de Zeus, que lhe deu a métis, a sabedoria prática, como seu maior atributo. É nela que se revelam a complexidade e a unidade da sabedoria técnica grega, que fez a sociedade contituir-se e se aperfeiçoar. Por tudo isso, pode-se perceber porque razão Atena era tida em alta conta pelos gregos, sobretudo pelos homens, que lhe temiam ao mesmo tempo que lhe reverenciavam o saber e a habilidade marcial, suas próprias habilidades. E certamente a tinham em alta conta por lhes assemelhar tanto, no que Atena se torna para nós o tipo feminino exemplar da independência almejada pelo feminismo moderno.