Por que estas pulsões ocêanicas?

Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?

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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Por que deverias retornar, Lima Barreto?


Bem se sabe que a terra da Bruzundanga, vulgarmente conhecida como Brasil, pertence a um povo, assim, meio ao gosto do instante, do momento. Somos uma terra sem tradição, não porque não tenhamos algo de bom para conservar, mas porque não queremos conservar absolutamente nada. Atrai-nos o novo, salta-nos aos olhos o estrangeiro, do múltiplo e o diverso apenas porque atual. Não temos memória para as boas nem para as más configurações que demos e damos a esse vasto território, e com isso a identidade dos homens que vivem por aqui aparece mesmo ausente, nenhuma. Há que se trazer Lima Barreto de volta, sua crítica ácida e direta, sem meias verdades, para fazer ver nosso cotidiano físico sob a ótica da metafísica - não para nos prender em abstrações etéreas e vazias, longe disso, mas justamente porque sem transcender o atual estado de coisas, sem encará-lo a partir de seu sentido histórico, nada se pode entender. O entendimento é o primeiro passo da ação: era Sócrates sábio incomparável ao mostrar que virtude é conhecimento. Pois então, conheçamos: em primeiro lugar, como viemos parar aqui! E já o livro de Barreto, Os Bruzundangas, é leitura fundamental para conhecermos essa nossa irresistível brasilidade.

"É deveras difícil dizer qualquer coisa sobre a sociedade da Bruzundanga. É difícil porque lá não há verdadeiramente sociedade estável. Em geral, a gente da terra que forma a sociedade só figura e aparece nos lugares do tom, durante muito pouco tempo. Os nomes mudam de trinta em trinta anos, no máximo. Não há, portanto, na sociedade do momento tradição, cultura acumulada e gosto cultivado em um ambiente propício... Pode ser definida a feição geral da sociedade de Bruzundanga com a palavra - medíocre"

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

E por aqui, nada de novo...


Tudo bem que Lady Gaga fascina até certo ponto com sua mistura não pouco sedutora de som e imagem, provocando os olhos a perceberem aquilo que a mente não quer ver, ou não pode. Mas sua mensagem não é nova, tornou-se ao contrário constante desde o momento em que se resolveu depor a qualquer custo as conquistas da civilização, dando voz as partes mais baixas ou ao que se marginalizou diante da cristalização inerente aos avanços de um padrão de cultura. Qualquer padrão exclui, e são os excluídos que se pretende fazer ouvir pela nova proposta cultural sob a qual vivemos. Gaga é um símbolo, é um condensado dessas inúmeras vozes postas em cena pela força da personalidade de um indivíduo, uma missão que toda grande persona acaba atraindo para si: a de ser a manifestação de muitas vozes, não necessariamente as mais baixas como a voz e o corpo de Gaga manifestam.
O que se vê, porém, em terras brasileiras é uma caricatura de tudo o que há de mais elevado na cultura humana, uma impenitente caricatura das grandes personalidades e das grandes ideias! E não é mesmo uma caricatura grosseira, mais ainda, uma caricatura terrível de Gaga o que essa moça resolveu fazer aqui? Mas como é próprio ao caricato ser irônico de algum modo, cubro-me também de ironia para dizer o quanto esse vídeo me fascinou: que admirável a construção do cenário e dos figurinos, que harmonia graciosa essa donzela popozuda conseguiu imprimir para fazer dialogar música, letra e ambientação, quanta criatividade na escolha dos seus parceiros de dança, dos passos que acompanham a música, da poesia aludida por cada verso cantado com uma voz de fazer inveja às mais brilhantes sopranos da música universal! É realmente admirável ver a capacidade que temos de por aqui nos deixar levar por uma excelência tão incomum aos nossos olhos como essa com a qual a srta. Valesca nos presenteia. Se o grotesco de Gaga é fazer ver o que nossa civilização excluiu, é imensamente mais grotesco quando a caricatura mais baixa possível do que há de mais baixo na civilização resolve dar ares de uma grande coisa. Nada mais digno de se recusar a ver.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

As duas “morais”




Pulsão de vida. Nascimento
de uma vontade –
vento, força: amor
que traduz o sofrimento
do que se vê no espelho, metade
de si, de outro: pavor.

Fisiologia impulsiva
à verdade, à alma, ao nada,
deixado à própria sorte –
labiríntica reflexiva.
Alegria fugaz, não experimentada:
encerrada em pulsão de morte.

Homemundo




A Rousseau

Primeira vez que vi o mundo
pareceu-me uma escultura
traços fortes, tom profundo
obra-prima de criatura
alguma forma sapiente
criando seres e fortuna,
deixando por fim um doente –
doença chamada cultura.
Chamou-se a si mesmo homem
teceu de si outra figura
tantos versos que lhe consomem
tantas cores nesta pintura,
triste imitação do Escultor:
condenou-se pela loucura.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

À janela



Talvez ele não volte. Talvez a vida não me apresente nada de novo e as flores quietas sem vento e o calor que me põe inconstante aqui dentro e fora e sempre continuem. Não gostaria de pensar que esta noite se repetirá, se não amanhã quem sabe outro dia ou ainda num ciclo eterno de ausências sem surpresas, de uma surpreendente mesmice que não cessa. Eu já sei. Sinto teu corpo bem perto, mas não vejo. Uma voz narra o destino da nossa luxúria. Perco as horas solitárias e os acasos determinados pelos sinos da igreja. Perco minha camisola, minha honra, meu futuro. Ganho ilusões e prazeres que só ao teu lado é possível desfrutar. Ao teu lado não posso. Espero ganhar novas roupas e valores. Quero observar a vida passar mas sem me ver ao fim inerte, desamparada. Quero me imergir na vida, cotidiana que seja, medíocre que seja. Não! Se alguma coisa aprendi foram tuas palavras indignadas: sem mediocridade! Serei superior à fatalidade que nos condena por um apelo mesquinho ao imediato da pulsão, mesquinho porque imediato, fatal porque condena. Há que se olhar o horizonte, o sol que desponta pela manhã, o céu azulado de tanto viver. Há vida. E ela não se resume aos anseios de carne, nem aos esmeros de espírito. A vida é tensão. Peca quem deseja os extremos. Sofre quem se apega ao fracasso de recusar-se a entender que não há dois caminhos mas muitos, e sequer se é capaz de escolhê-los um só. Todos os caminhos encontram-se repletos de rosas e espinhos, de dias e noites, de dores e de prazeres. Há que se escolher a vida.

Imagem: quadro de Edward Hopper

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Lima Barreto - Triste fim de Policarpo Quaresma




O fim de Quaresma é triste porque a morte é derradeira para um homem de estudos em terras onde estudar não passa de excentricidade de visionário e de pedantismo de doutor sem diploma. Ter livros e não ter títulos é incongruente para a opinião da média de nossos brasileiros, encerrados que são na mediocridade de sua busca pelo prazer físico e por aquele sempre presente descaso com aquilo que diz respeito à alma, à cultura e à virtude, que torna a vida humana digna de ser vivida. Por aqui a mais alta dignidade é ser médico ou jurista, militar ou militante, burocrata de um Estado corrompido em seu fundamento, porque dado à imposição de autoridade e, por isso, à falta representação do país em seus governantes. A legislação e a governança chegaram prontas, encaixotadas na pior das suas limitações – se chega a vislumbrar no Brasil de Barreto, talvez ainda hoje, a estratificação da sociedade em apenas duas classes: a classe de quem sobrevive e a de quem dá a sobreviver. No fundo, as mazelas por não se preocuparem senão com as coisas mais transitórias impediam que a vida do espírito e da cultura, o mais elevado anseio das formas de convívio humano, acabassem preteridas exatamente como excentricidades de visionário e como pedantismos de doutor sem diploma.
Quaresma é visionário e pedante segundo a mediocridade tupiniquim. Seu amor por aquilo que o Brasil foi, é e pode vir a ser é entendido como esforço de desocupado, coisa de quem nada tem que fazer de mais importante. A primeira parte do livro de Barreto é uma descrição precisa desse choque de valores que o homem de estudo acaba por assumir, face ao grupo em que vive, para fazer valer a verdade. Quaresma é filósofo, no mesmo sentido em que Sócrates o foi. Sua indignação contra a falta de memória popular e social, falta de recurso à tradição e à história que lhes constitui, está no centro das críticas mais duras de Barreto ao modo de vida brasileiro. Contra esse sinal de fraqueza, Quaresma empreende uma verdadeira epopeia cômica: sua ideia fixa de tornar o Brasil mais brasileiro parte dos seus estudos e da descoberta da música de violão como a mais própria à alma nacional, até a intempérie de sugerir o tupi-guarani como língua oficial do país. Encerrado como louco, vai do sanatório ao Sossego, iniciar uma nova tentativa de trazer a essas terras algum valor.
E de fato descobre, ao comprar um sítio no interior do Rio de Janeiro, que a terra brasileira é de extremo valor: aquilo que aqui se planta, dá. Seu problema não é a terra, mas os homens que a administram. Quaresma logo descobre que também a vida no campo por aqui está desprovida de sossego. Seus planos estratégicos de alavancar a agricultura do país, por meio de um estudo rigoroso da fauna e da flora, mas também dos mecanismos do labor e os percalços da burocracia, tornam-se um manuscrito que Quaresma, já desiludido com a vida sossegada do campo, decide entregar pessoalmente ao Marechal Floriano. De volta à cidade, alista-se nas forças aliadas contra os revoltosos, a fim de dar vazão, por outro meio, a força do ideal que movimento o verdadeiro patriota.
E temos aqui o que talvez seja o traço histórico mais interessante do livro de Barreto. A longa descrição do Marechal Floriano, um sujeito ausente de qualidades intelectuais, mas de uma tibieza de ânimo e preguiça descomunal entre os grandes governantes e ditadores, nos concede uma impactante apresentação do caráter ao mesmo tempo paternal e cruel desse homem-talvez, o líder maior da República nascente, e o seu contraste com aquilo que se deveria esperar de um líder à altura. Sua mediocridade, proporcional ao nível que ocupa mas paralela à do restante da população, deixa a Quaresma a incômoda suspeita de que não parece valer tanto a pena assim o sacrifício que a nação lhe tributa. Agora como major de fato, sua ânsia em compreender os modos da guerra o move novamente aos livros. Mas de que lhe valeram anos perdidos em aprendizado, em conhecer a história para melhor agir com relação ao futuro, aqui em meio aos que no máximo só pensam no que irão comer ou beber no dia de amanhã? Sua loucura viril termina em angustiosa desolação. Desacreditado do futuro, não vê mais do que perda de tempo de seu passado. O presente agora não poderia ser mais niilista. Vê-se injustamente condenado pelo seu manifesto de repúdia à miséria moral que presenciara em seu cargo. A miséria dos medíocres, ocupados com os louvores pela vitória do Marechal, não lhes permitia ver a real grandeza do homem. Seu fiel amigo, o artista Coração dos Outros, nada pode fazer. A loucura dos míseros vencera a dos sãos.
Ismênia é talvez a contraparte feminina de Quaresma, porém entregue não aos ideias mais elevados do espírito e da cultura, mas ao casamento – já ausente de sua ligação com o amor, com sentimentos ou sentidos: para Ismênia, o casamento se impunha como uma ideia, uma pura ideia, que independe do noivo que demora mas que a enlouquece quando este já não lhe pode concretizá-la. Ao abandoná-la o noivo, a ideia fixa que movia a frágil mente da jovem dada ao casamento se lhe transforma em loucura, aquela mesma de não poder ver na realidade a esperança que domina o cérebro. Em processo de falecimento, determina que sua morte se dê vestida de noiva – e assim segue ao túmulo, para o desespero dos pais. Em uma das frases mais belas da literatura, Barreto resume o fim trágico da moça: “e lá ia aquela moça por ali afora para o buraco escuro, para o fim, sem deixar na vida um traço mais fundo de sua pessoa, de seus sentimentos, de sua alma!”. “Ela ia para a cova com a insignificância, com a inocência e a falta de acento próprio que tinha tido em vida”. Mais trágico fim que de Quaresma, porque nem a sua ideia fixa constantemente pertencente à mediocridade social teve os ares de grandeza que podem ser vistos no major. No Brasil, nem mesmo a forte determinação em alcançar um matrimônio que seja tem qualquer tipo de boa realização. Se a terra aqui, dizia Quaresma, é terra boa, em que plantando tudo dá, não acho que podemos dizer, com Barreto, o mesmo em relação a gente que vive por essas bandas.