Por que estas pulsões ocêanicas?

Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?

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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.

domingo, 21 de setembro de 2014

Pagode nosso de cada dia






Nem bem começa o dia e o pagode dá o tom das ruas. Quem dera fosse um mal dos subúrbios, mas a sintonia é angustiante. Uma descida rápida para comprar pão e frutas é o bastante para se deixar impregnar pela melodia do pandeiro e do amor. Sentidos invertidos, pervertidos, dúbios. Pandeiro e amor não podem significar mais que um corpo de mulher, mais que uma atração sexual. Será que é amor? – canta a voz na rádio, encanta o povo. Sua dúvida não é sugestiva, é alienante.
Não pergunto por nada além de mamões e bananas, mas parece que me deveria estar ambíguo, que me deveria olhar por outro sentido, invertido, pervertido. E não é que o tenho? Música popular não é senão a tradução do que é comum ao povo, não é mais que cantoria de sensações e aspirações que a multidão alimenta. Todos somos multidão. Em alguma fase da vida, porém, deveríamos deixar de sê-lo. Somos mais que mamões e bananas.
Hoje comerei só mamões. Estou confuso. Olho-me ao espelho de modo diferente. O olhar é mais profundo. Vasculho a multidão que há em mim. Lá fora o pandeiro tece ainda considerações sobre o amor. Pela linguagem dos olhos, eles dizem. Vejo não estar sozinho. Por poucos instantes meu corpo se projeta ao espelho como uma figura adversa, um outro ali à frente, sério e cansado. Vejo-me em um duplo. Ambiguidade, inversão? Há perversão, por certo. Preliminares de um apelo menos ouvido. Insistimos em não ouvi-lo. Gostamos de imaginar a vida resumida à cama. A noite convida a fazer amor, eles dizem. Eu não me amo, talvez. Insistimos nas preliminares e jamais alcançamos o gozo.
Perto do coração selvagem não há voz alguma. São gemidos, são batidas de funk em vias de substituir o pandeiro e o amor. Quase saía de casa com a blusa invertida. Voltei ao espelho, mas o olhar era outro. Desci as escadas e as vozes se elevaram. Não existem mais metáforas e figuras de linguagem. Descemos literalmente ao clamor do sexo. Uma mulata caminha na calçada, o rabo seduz pelo vestido curto, rabo ou pandeiro, tanto faz. O coração selvagem só ouve a voz do amor. Um carro me surpreende. Quase saí de casa sem voltar. No fundo me sinto mesmo ausente de casa. Parece que a alma se ausenta do corpo, se olha assustada, silencia. Não há silêncio nas ruas. Os olhos caçam outra donzela, gazela deveras, de pandeiro curto mas de belos mamões. A linguagem dos olhos é sutil, mas a do corpo soa explícita. Talvez esteja vendo coisas.
No fundo me sinto ausente. Muito perto do som das ruas. Sons e imagens. À noite, a televisão encerra o dia com a linguagem do corpo, explícita. Já não cantam as ruas, apenas a intimidade. Olho-me na tela. A multidão agora é multicores, é sedutora, é transparente. Não se vê senão corpos, pandeiros e amores. Apelo ao prazer sentido, desejado, buscado a todo custo. Buscam-se amores como se buscam mamões e bananas. Há inclusive boa oferta. São malhados e saradas, meninos e meninas. Por que não uma sintonia de fêmeas? Por que não um orgulho feliz entre machos? Há que nos orgulharmos de nossas novelas cotidianas. Ele é casado, mas não consegue abrir mão das sensações que lhe oferecem as jovens alunas. Ela é solteira, e busca encontrar o amor que conjugue a delicadeza do olhar intimista com a quintessência do prazer sobre a cama. Não demoram a se inverter os papeis. O mocinho era o bandido, no fundo.
Por ironia, todos são bandidos. A multidão aplaude, canta, assiste. Imita seus ídolos, encara suas misérias. Nossas relações dão-se no mais elementar dos tecidos de sensações, naquele jogo infantil e selvagem entre dor e prazer. Mas fugimos de fato da dor? O apelo ao prazer é multicolorido, é explícito, é pervertido. Alimentamos por aqui a cultura de frutas, belas e gostosas. O melhor das pessoas se alcança na fome. Joga-se fora o bagaço. Quem sou eu? Talvez não esteja mais que seduzido pela cantoria das sereias. É preciso se amarrar à haste do navio, nos ensinou o astuto Odisseu. Desligo a TV e deito na cama. Não há sons ou imagens, mas trago a cultura em mim. É preciso cultivar outras searas, novos terrenos, diferentes desse árido clima de oásis que por aqui nos ilude. Talvez a cantoria das ruas seja abafada por sinfonias para violino. Violinos, não violões – porque, desgraça, os últimos já me deixam dormir pervertido.

Inverno, 27 de junho de 2014