Por que estas pulsões ocêanicas?

Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?

***

A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015



Caros, de certo modo dou por encerrada minha atividade nesse blog, já que me dispus a concentrar as publicações e as minhas áreas de trabalho em um único site.
Espero contar com a presença e a contribuição de vocês nesse novo espaço!

Página de Mathias de Alencar

quinta-feira, 21 de maio de 2015

O romancista salvará o homem


A frase do tio Rangel em A Ladeira da Memória é uma profecia: "o romancista salvará o homem". De fato, a salvação aqui é pessoal, única, própria mesmo do poeta e do escritor, que não encontra melhor forma de sublimar seus temores e prazeres senão pela literatura. Deve-se escrever, porém, para oferecer em alguma medida salvação a outrem. E aqui não se trata daquela mesma do Cristo ou do Buda. A salvação de que se trata em literatura é, por assim dizer, um caminho prévio ao da religião. A literatura, ao ligar a pessoa, em suas vivências internas, à sua consciência, salva o homem do animal que permanece em nós; a religião, ao ligar o divino que há em nós a Deus, salva o homem de enclausurar-se em sua humanidade. A religião é causa final; a literatura, causa eficiente. São formas distintas de salvação, mas são complementares. É impossível acreditar que o animal sem consciência alcançará a essência divina que o habita e o levará ao encontro do Ser Supremo. É como se houvesse a necessidade de uma salvação prévia, que a literatura pode oferecer. Se escrevo não é senão para salvar-me a mim e aos leitores que, como eu, estiverem dispostos a mergulhar no fundo de si mesmos, para ver o que lá se esconde de mais aterrador e de mais belo.

O (triste) caso do leitor brasileiro


Quem por aqui se aventure em se tornar um razoável conhecedor de literatura, terá inevitavelmente que se deparar com algumas das muitas dificuldades que encontrei. A primeira delas diz respeito à nossa própria literatura: as letras no Brasil, embora tivessem sua época de glória nacional sobretudo até pouco mais da metade do século XX, hoje estão quase completamente imersas em versões adolescentes de thrillers americanos ou em pastiches de literatura de verdade, nas figuras indeléveis dos senhores Coelho e Veríssimo. A própria expressão "literatura de verdade" soa esquisito entre nós: quem poderia dizer o que é de fato esse "de verdade" literário? No Brasil, é sempre mais fácil reunir sob o mesmo quesito, ou na mesma estante, as obras monumentais de um Dostoiévski e as incursões ginasianas de escritores ditos teens. Se é verdade que sem um critério de avaliação que seja melhor do que os oferecidos pelas livrarias nenhuma esperança pode haver para a cultura superior, deve ser irresistível pensar que ao brasileiro é oferecida uma ausência de critério exatamente para destruir-lhe a capacidade crítica.

E as livrarias tem papel imprescindível nessa destruição do senso de medida literário. A divisão entre livros para um público segundo a faixa etária soa ofensivo a obras de grande peso, como quando os livros de J. R. R. Tolkien são postos entre os infanto-juvenis ou quando se encontra assustado o diário da Surfistinha entre os clássicos da literatura brasileira. Essa divisão, meramente comercial, é bom que se diga, não deveria ter maiores impactos em quem resolve se educar literariamente. Todo o apaixonado por livros, que os tenha no mínimo que seja em sua casa, já os dispôs de uma certa forma, em uma certa ordem própria, isso quando há a preocupação de os organizar. Em uma livraria não é diferente. Mas os padrões de mercado não deveriam, vale repetir, ter impacto sobre nossa forma de educação para as letras: isso, porém, não seria mais provável de acontecer em um lugar onde se perdeu, com o tempo ou por ação planejada, os critérios de avaliação estéticos. Se em terra de cego quem tem olho é rei, aquele capaz de encontrar e diferenciar a beleza da sua imersão fantasmagórica consentida por entre a feiura generalizada não só encontrará juntamente a beleza de sua própria alma, mas a riqueza e o sentido real de ser humano.

Contudo, não é apenas quanto à classificação que as livrarias exercem influência sobre o gosto literário: pela própria demanda econômica que diz respeito ao mercado editorial e de venda de livros, há clara distonia de oferta de obras, nacionais e estrangeiras. O primeiro grande entrave ao público mais amplo é que os livros serão lidos por aqui à medida que sejam traduzidos. As sessões de livros importados, em língua original, são ramo apreciado pelos poucos que se sentem dispostos a aperfeiçoar um segundo idioma pela leitura. Diminuído assim o seu acesso, fica-se à cargo do que as editoras se acreditam interessadas em publicar pelo interesse que, supostamente, o público demonstraria em consumir. As ondas inconstantes do gosto popular são, ao mesmo tempo, determinadas e determinantes para o que se põe nas prateleiras das livrarias. Essa dialética de interesses, no fim das contas, tende a produzir a distonia de que falava: de muito menor interesse e apreço de nossa parte, a literatura brasileira encontra-se reduzida em sua oferta, quando se tem sempre com mais facilidade um novo lançamento estrangeiro antes que uma obra valorosa em nossas letras, como nas tentativas que se pode fazer de procurar as obras de Lima Barreto. Isso mesmo dito de um dos mais conhecidos de nossos autores: o que não se chegaria a dizer de um José Geraldo Vieira, grande tradutor de Dostoiévski e brilhante escritor, inexistente em grande parte do acervo livreiro atual?

Em alguma medida, os livreiros tem razão: literatura brasileira não vende. De interesse quase restrito a acadêmicos e estudiosos, os autores brasileiros chegam a ser desconhecidos do grande público, que muitas vezes não saberia dizer-lhes nem o valor, que dirá os nomes! As escolas são, em boa medida, uma causa provável dessa ojeriza que o público brasileiro sente por sua literatura. Incentivando os mais jovens ao trato com obras de peso como Machado de Assis ou Guimarães Rosa, em vista não de lhes extrair a experiência poética ou existencial, mas tão-somente em vista de aspectos sócio-políticos ali presentes ou do imaginário do autor, que se vai criticado enquanto primitivo ou folclórico, alguns outros louvados porque não possuem mitos, mas tecem a realidade nua e crua, o aluno chega a suspeitar de que literatura brasileira é mesmo isto, objeto de constante estudo e análise acadêmica e escolar, e nada além disso. Saído da escola como quem sai de um sistema prisional, essa pobre alma não vê graça alguma em voltar ao território estranho das letras de sua língua mãe.

Mas há, não obstante, uma culpa pertencente aos próprios escritores: as histórias são quase sempre desinteressantes, ou muito remotamente atraentes, a exigirem do leitor nacional uma dada postura de espírito que tem de ser similar àquela da região em que se passa. Quem já sentiu na pele a linguagem de Guimarães Rosa a beirar o intragável sabe que o esforço de regionalizar as letras pode ter um sentido inverso ao pretendido: pode levá-lo a se regionalizar em seu mundo, limitando o alcance de sua obra. Mas o esforço para ler Guimarães não é diferente, em certa medida, daquele que se tem para ler Machado de Assis, ainda que por motivo diverso: a linguagem de Machado não é propositalmente regional, mas é distante de nós. No fundo, nós é que nos distanciamos de seu valor. A riqueza literária de Machado chegou a ser incomparável em relação ao que veio depois. O autor de Dom Casmurro é, para muitos e para mim, nosso grande escritor. Mas como chegamos a estar assim tão afastados dele? Como poderíamos no recusar a uma formação pelas letras machadianas, quando até hoje os anglo-saxões se formam por Shakespeare? O erro não estaria em nós, que muito pouco valorizamos o idioma e sua beleza, que já perdemos a sonoridade da língua, sua flexibilidade e ambiguidade, as inúmeras possibilidades que desencadeia e que já estão em grande parte exercidas pelos nossos grandes escritores? Não deveríamos, por isso, nos aproximar cada vez mais de Machado e dos outros ao invés de nos distanciarmos? A responsabilidade dos autores em trazer como enredo histórias pouco interessantes, em uma forma de dizer lapidar, se mistura ao pouco interesse que alimentamos hoje em exercitar essa mesma forma de dizer que não só nos aproximaria deles como de nós mesmos, na pouca graça que se vê em tais enredos, tirados de nossa própria existência. A literatura é quase sempre reflexo da sociedade em que nasce - talvez sejamos isso mesmo: desinteressantes ainda que virtuoses na linguagem. O mais terrível é que parecemos estar nos distanciando também desta virtuosidade.

O pouco interesse que a literatura brasileira desencadeia em nós é desequilibrado constantemente pelo teor de profundo interesse que nos comove à leitura as obras estrangeiras. Nomes como Shakespeare, Goethe, Dostoiévski, Proust, Garcia Marques e Pessoa, ou os menos clássicos, embora não menos vendáveis por seu interesse, Rowling, Tolkien, Martin, Meyer, também Sparks, Roth, Green. Uma rápida procura pelos mais vendidos por aqui põe, ao lado destes estrangeiros, a "variedade de interesses" literários do brasileiro, que vai de Isabela Freitas e outros autores teens até os nomes mais conhecidos de Coelho, Veríssimo e dos recém-falecidos Rubem Alves e Ubaldo Ribeiro, que figuram nas listas junto aos nada literários Augusto Cury, Marcelo Rossi e Edir Macedo. Tudo bem que se chegue mesmo a não ver sentido algum em gastar alguns dias com a leitura de A MoreninhaCaetés ou Perto do Coração Selvagem. Que se entenda pedante as elucubrações de Veredas ou o enciclopedismo de A Ladeira da Memória, para alguns até mesmo sem razão de ser um morto recontar sua vida como em Memórias Póstumas. Mas a lista daqueles por quem os jovens leitores se interessam no Brasil - e digo "jovens" em sentido figurado, para contemplar até mesmo os de idade madura que, em menor número de leitores em relação aos de menos idade, segundo pesquisa recente, são por isso mesmo ainda juvenis em uma prática para a qual deveriam "amadurecer" - não chega a trazer senão uma ausência completa dos clássicos mencionados, com alguma exceção do já clássico O Pequeno Príncipe, que atingiu incríveis vendagens nos últimos anos. Em outras palavras, o que se vê entre nós não é a recusa de nossos clássicos, chatos e pedantes, pelos clássicos estrangeiros: estes são igualmente ignorados pelo público, ainda lidos a não ser pelos mesmos acadêmicos que consomem nossa literatura, chata e pedante. Os clássicos, aqui, é matéria de estudo, não de formação.

O problema que parecia tender em boa parte às instituições, como livrarias e escolas, ganha aqui uma nova dinâmica de realização. O que se percebe é um ciclo vicioso que impede os novos leitores de alcançarem juízos de valor sobre as obras literárias que leem e lerão e, por isso mesmo, influencia de certa forma o mercado editorial e livreiro, encerrando o ciclo nas escolas que, talvez tentando começar um processo diferente, não vê muita oportunidade na escassa oferta das obras fundamentais, alienando com isso seus alunos. Pode-se, no entanto, entender este círculo vicioso, tal como ele se dá na cultura em geral, como se iniciasse no papel que as escolas atribuem ao valor da literatura e aos mecanismos que viabilizam o primeiro acesso dos alunos aos livros. Não é, de modo algum, enquanto objeto de estudo que a obra literária deve ser enfocada nas primeiras idades, e sim como expressividade existencial, como elaboração, pela linguagem, de vivências e conflitos a que cada um de nós está sujeito, e com a qual se pode mesmo aprender a dizer o que se passa conosco. As letras, como objeto de estudo, devem ser prioridade do período universitário. O aluno do ensino fundamental e médio precisa conhecer, antes, a funcionalidade da linguagem poética e imaginária, de que a literatura é um veículo comum e amplo. Ler a literatura brasileira como um repositório das vivências e dos conflitos a que estamos lançados em solo pátrio é abrir-se para a dinâmica que nos constitui mais propriamente. As letras brasileiras são a melhor forma de nos conhecermos, e recusá-la pelo estrangeiro é não querer ter de se olhar ao espelho.

Não poderia negar, contudo, que tenha de haver um convívio virtuoso, e não alienante, com a literatura de outros povos. Enquanto atraente por ser, em certa medida, diferente de nós, ofertando-nos tipos humanos que destoam da mesquinhez e vilania que quase sempre encontramos em nós e pela vizinhança, as letras estrangeiras nos servem para criar exatamente o sentimento de estranheza que deve nos incomodar a querer mudar. Sem isso, olharíamos o mundo apenas pela ótica estreita e caipira de um provincianismo que beira o esquecimento de si, e as consequentes soberba e pequenez moral que todo esquecimento põe em marcha. A literatura é remédio para o autoconhecimento, mas em uma medida que hoje parece haver se perdido, seja porque não se lê mais em vista de se olhar ao espelho, seja porque são muito poucos os espelhos produzidos que satisfazem a transparência apropriada para nos enxergarmos com o máximo de nitidez possível. São a estes que chamei acima de "literatura de verdade": se em uma escala menor a medida da "verdade" parece dizer respeito a quem lê, no âmbito mais elevado da crítica literária não é possível que se possa continuar a deixar ao sabor da escola, do mercado e do leitor a alienação de valores que põe lado a lado Machado de Assis e Veríssimo, Tolkien e Meyer, Shakespeare e Sparks. A continuar assim, já não haverá mais espelhos: onde todos são cegos, não há quem possa enxergar um palmo à frente. Se o público continuar a neglicenciar os critérios de avaliação que diferenciam aqueles pares em larga escala, não pode haver esperança de que algum dia as letras voltarão a servir para o nosso desenvolvimento, como pessoa e como nação.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

O duplo - Dostoiévski


Todos temos um duplo de nós mesmos. O de Dostoiévski, ou antes, o do senhor Golyádkin, nasce a partir de uma doença, de uma crise: a solidão que o destina a viver enclausurado em si provoca o nascimento de sua outra parte. Essa outra parte é uma fuga, pode-se pensar, uma forma de escapar ao terrível mal moderno da vida isolada do mundo, sem sentido e sem saúde. Quando o senhor Golyádkin percebe despontar em si a necessidade em quebrar essa barreira, receitado que foi por seu médico a ter mais vida social, faz-se por surgir num ambiente a que não pertencia por classe, nem por cultura, decidido em esboçar sua entrada triunfal na sociedade de que sempre esteve à parte, quando da festa de alta classe que seu patrão e benfeitor oferecera em honra da filha para amigos e convidados. O senhor Golyádkin, que não era nem amigo nem convidado, mas como assim não mereceria estar ali, por que razão não o deveria, avança pelos fundos da casa e se impõe como se fosse também um deles até ser vergonhosamente retirado à força quando decide por bem retirar para dançar a filha do benfeitor, quase lhe denunciando um pedido matrimonial, por certo exalando sua audácia sem vergonha, sua intimorata loucura de solitário. Em fuga do recinto vergonhoso de um aparente remédio para sua doença, nesse momento sua personalidade adoece. Ter-se como que a um outro de si, um duplo até agora só suspeitado ao espelho ou nos sonhos, é o que Golyádkin cria, para sua satisfação inicial, para seu sofrimento em seguida. Pois o duplo é criação que degenera, definha, divide. Não se pode desejar a sanidade quando o seu um outro anda por aí e age como se fosse um gêmeo de sua existência. O nosso duplo é saudável até tornar-se um outro por aí.

De um outro de si entendemos, nós os homens solitários. A necessidade do desdobramento é por demais emergencial, sufocante. Tem-se de viver em sociedade, corresponder a anseios e honras, amores e fracassos. Tem-se de ser outro. Mas o outro pouco percebe o desdobramento, pouco se vê que o ser social é só uma parte de nós. Quando estamos na festa, pouca festa há senão a que deseja aventurar-se novamente nas cadeias de si mesmo, voltar ao seu reduto isolado, ao nosso mundo. Nessa aventura em sociedade, é mais forte o desejo de se deixar mostrar sem ser visto, de levar os olhos alheios a perscrutarem o valor que escondemos, só mesmo dado a poucos, bem poucos, com os quais voltamos para casa e dividimos a vida. Aos demais, a impressão é de outra imagem, de um outro eu. Não é uma escolha, é necessidade. Golyádkin soube bem que apenas no ambiente fraterno de seu próprio lar o outro poderia ser boa companhia. No mundo externo, sua outra parte torna-se um oposto, um arqui-inimigo, um alterego antagonista, adversário, o outro se torna a pior imagem de si. Ou talvez a melhor, a depender de quem domina o lar. Mas por fim é do lar que o senhor Golyádkin é retirado, do conforto paupérrimo a que se via entregue, pela ambição de uma vida normal, como todos os demais. Mas os demais não são sua existência, nem sua saúde. Os outros são sua doença. A cura imaginada, a entrega plena e destemida ao vínculo sociável fez-lhe irremediavelmente louco. Retirado de seu lar, constantemente alucinado por aquela figura arredia de sua contraparte, acredita lhe caber o fim almejado: o livramento da bela filha do benfeitor, livrá-la de um outro que ele imagina indesejável. Era tudo o que desejaria. Mas não se pode ser benfeitor quando não se tem poder para isso. Golyádkin é gente pobre, indigno da alta classe de onde procede sua princesa. Investindo na transição de classe à força, é forçado a seguir o médico, dessa vez não mais para receitá-lo à convivência, mas para trancafiá-lo de uma vez em um antro de solidão. Sua audácia é loucura, sua imagem é doentia, seu desdobramento é declínio. Golyádkin é retirado de seu lar, de sua normalidade, de sua mínima possibilidade de cura. A sociedade não se compraz no desdobramento, embora ela seja seu deflagrador. O outro de Golyádkin, ou de Dostoiévski, é um símbolo da loucura da vida coletiva. O homem, antes de ser social, é seu mesmo. O nosso duplo é loucura até tornar-se um outro privado da vida em comum.

domingo, 25 de janeiro de 2015

Experiência de fim de tarde


O fim de semana me marcou pelos filmes, Magia ao luar e Colcha de Retalhos. O primeiro, mais recente, é de 2014; o segundo, de 1995. Aquele, do grande e aclamado cineasta Wood Allen; este, de uma pouco conhecida diretora de Hollywood. E se ambos me foram bastante enfáticos na força que os diálogos têm para compor um drama, tecido em intrigas e histórias, aquilo que me pareceram trazer em comum, ou seja, a riqueza da experiência humana com a beleza da vida, é em cada um significativamente diversa: enquanto no último ela é a luz que ilumina as vidas e o tom com que nos constrange a admirá-las, no primeiro é só e tão-somente apreciado como farsa.

A magia de Allen, seus diálogos curtos, prospectivos e abusivamente cultos, são a tônica de seus enredos, aquilo que o tornou conhecido e que lhe confere, com certa autenticidade, a genialidade de sua direção. Mas temo que em Magia ao luar haja apenas isso: uma grosseira e talvez mesmo despropositada tentativa de fazer seu talento dizer mais, quando não há mais o que dizer. Retomando um velho hábito de intelectuais decadentes, a colorirem a si mesmos como uma força de novidade contra a velha e desde sempre caduca maneira de a partir dos templos pensarmos a vida, o filme de Allen é uma espécie de manifesto da razão depois do seu colapso; e o que poderia ser uma reviravolta daquelas tramas pseudo-intelectuais, em que se apregoam, com invejável fé religiosa, os preceitos ateístas autointitulados o cume da evolução humana, no fundo apenas um certo tipo hoje banal de pré-conceito, acaba tornando-se mais uma.

Mas Allen é irônico por essência, e sua Magia talvez deva ser entendida como tiro de misericórdia contra tamanha ignorância sapiencial, algo como estar de saco cheio de ouvir tanta gente arrotar conhecimento depois de comer apenas esterco e estrume. A impressão que se chega a ter, porém, é que tudo não passa de uma ilusão: a magia que encanta a vida do homem comum, a razão que persuade o homem culto de sua superioridade abjeta. O escambo de uma pela outra não é senão trocar seis por meia-dúzia. Com a visível diferença de que, se não se pode fugir da ilusão, melhor é que ela seja tão mágica quanto possível. E a decisão do mágico racional em se entregar à magia do amor pela bela impostora é o truque de Allen para nos fazer ver que na vida só se tem mesmo, custe o que custar, um encontro final com um grande truque de mágica, e nada além disso.

Colcha de retalhos caminha, do mesmo modo, na tentativa de desenrolar o fio da ilusão do amor a partir dos retalhos de histórias que as mulheres da trama vão tecendo enquanto ajuntam suas alegrias e mágoas para a colcha final. É uma trama absolutamente sensível e profunda, como é a vida, sempre perdida em retalhos soltos e esquecidos se não fosse a habilidade do artista em tecê-los para recobrir nossa imaginação. Todas as belas histórias têm em comum o amor, mas trazem de suas narradoras a delicadeza de percebê-lo como não sendo marcado senão por uma força misteriosa, que leva à insanidade quem dele sofre. As dificuldades do casamento e da vida a dois são refletidas na colcha a ser construída a partir da imagem que cada uma forjou para si mesma, do que lhe foi possível, sobre a magia ilusória e ao mesmo tempo irresistível das diversas formas de amar.

Diferente do filme de Allen, porém, a crueza das frustrações e dos desenganos do amor e da vida não é encarada aqui como uma ilusão: esta é a vida, e não há como escapar do influxo de ser ao mesmo tempo tomado pela paixão avassaladora e pela frieza do pensamento racional, como não há escape entre o nascer e o pôr do sol. O murchar inevitável de uma flor, retida em seu lar no jardim ou esbelta em um vaso de uma casa de mulher, não esconde, de modo algum, a beleza que exala enquanto desabrocha para a vida. A transitoriedade é um fardo à razão, mas é exatamente por isso que devemos, a partir dela, conservar a riqueza de vida que se faz digna de ser vivida pela recordação dos momentos que são como o ar que respiramos. Se pelo filme de Allen fico com a impressão de que tudo não passa de um truque, a partir de Colcha de retalhos sou levado a tecer um outro olhar, direcionado não mais para o compromisso ortodoxo de ser o devoto da razão científica, mas para a simplicidade do frescor que as agruras e maledicências pelas quais passamos jamais apagam a beleza que há em poder admirá-las como a maior das dádivas: a de poder estar vivo e amar.