
A sagacidade crítica com que Saramago mergulha no mundo mítico do judaísmo em seu livro mais recente é de nos tirar o fôlego, e nos leva a uma assustadora jornada pelo conflito entre a fé e a razão de um homem posto a contemplar todos os absurdos que o deus deste povo é capaz de praticar para levar seus súditos à reverência. O berço cultural do cristianismo está aqui transpassado pelo vigor das letras lusitanas de um dos maiores escritores vivos, e talvez o maior deles em língua portuguesa - O Caim de Saramago é um alimento para o espírito inconformado, que encontra na ironia a própria essência da crítica sábia, itinerante, que não se limita aos ditames da racionalidade acadêmica e formal, mas que pulsa no peito aquela serena jovialidade do artista acima das filiações, dos partidarismos, para expressar a angústia da alma em busca da beleza essencial do mundo e de nós mesmos... E não à toa a ironia nasceu juntamente com o espírito filosófico, com a paixão pela descoberta do novo, do outro, de tudo; e é pela ironia que Saramago nos mostra um "novo" antigo testamento, uma "nova" mitologia, um "novo" deus. A força de sua novidade pode ser apreciada neste belo verso a traduzir toda a grandeza que seu texto nos inspira nesta volta ao passado - Havia uma nuvem escura no alto do monte Sinai, ali estava o senhor.