Nem bem começa o dia e o pagode dá o tom
das ruas. Quem dera fosse um mal dos subúrbios, mas a sintonia é angustiante.
Uma descida rápida para comprar pão e frutas é o bastante para se deixar
impregnar pela melodia do pandeiro e do amor. Sentidos invertidos, pervertidos,
dúbios. Pandeiro e amor não podem significar mais que um corpo de mulher, mais
que uma atração sexual. Será que é amor? – canta a voz na rádio, encanta
o povo. Sua dúvida não é sugestiva, é alienante.
Não pergunto por nada além de mamões e
bananas, mas parece que me deveria estar ambíguo, que me deveria olhar por
outro sentido, invertido, pervertido. E não é que o tenho? Música popular não é
senão a tradução do que é comum ao povo, não é mais que cantoria de sensações e
aspirações que a multidão alimenta. Todos somos multidão. Em alguma fase da
vida, porém, deveríamos deixar de sê-lo. Somos mais que mamões e bananas.
Hoje comerei só mamões. Estou confuso.
Olho-me ao espelho de modo diferente. O olhar é mais profundo. Vasculho a
multidão que há em mim. Lá fora o pandeiro tece ainda considerações sobre o
amor. Pela linguagem dos olhos, eles dizem. Vejo não estar sozinho. Por
poucos instantes meu corpo se projeta ao espelho como uma figura adversa, um
outro ali à frente, sério e cansado. Vejo-me em um duplo. Ambiguidade,
inversão? Há perversão, por certo. Preliminares de um apelo menos
ouvido. Insistimos em não ouvi-lo. Gostamos de imaginar a vida resumida à cama.
A noite convida a fazer amor, eles dizem. Eu não me amo, talvez.
Insistimos nas preliminares e jamais alcançamos o gozo.
Perto do coração selvagem não há voz
alguma. São gemidos, são batidas de funk em vias de substituir o pandeiro e o
amor. Quase saía de casa com a blusa invertida. Voltei ao espelho, mas o olhar
era outro. Desci as escadas e as vozes se elevaram. Não existem mais metáforas
e figuras de linguagem. Descemos literalmente ao clamor do sexo. Uma mulata
caminha na calçada, o rabo seduz pelo vestido curto, rabo ou pandeiro, tanto
faz. O coração selvagem só ouve a voz do amor. Um carro me surpreende. Quase
saí de casa sem voltar. No fundo me sinto mesmo ausente de casa. Parece que a
alma se ausenta do corpo, se olha assustada, silencia. Não há silêncio nas
ruas. Os olhos caçam outra donzela, gazela deveras, de pandeiro curto mas de
belos mamões. A linguagem dos olhos é sutil, mas a do corpo soa explícita.
Talvez esteja vendo coisas.
No fundo me sinto ausente. Muito perto do
som das ruas. Sons e imagens. À noite, a televisão encerra o dia com a
linguagem do corpo, explícita. Já não cantam as ruas, apenas a intimidade.
Olho-me na tela. A multidão agora é multicores, é sedutora, é transparente. Não
se vê senão corpos, pandeiros e amores. Apelo ao prazer sentido, desejado,
buscado a todo custo. Buscam-se amores como se buscam mamões e bananas. Há
inclusive boa oferta. São malhados e saradas, meninos e meninas. Por que não
uma sintonia de fêmeas? Por que não um orgulho feliz entre machos? Há que nos
orgulharmos de nossas novelas cotidianas. Ele é casado, mas não consegue abrir
mão das sensações que lhe oferecem as jovens alunas. Ela é solteira, e busca
encontrar o amor que conjugue a delicadeza do olhar intimista com a
quintessência do prazer sobre a cama. Não demoram a se inverter os papeis. O
mocinho era o bandido, no fundo.
Por ironia, todos são bandidos. A multidão
aplaude, canta, assiste. Imita seus ídolos, encara suas misérias. Nossas
relações dão-se no mais elementar dos tecidos de sensações, naquele jogo
infantil e selvagem entre dor e prazer. Mas fugimos de fato da dor? O apelo ao
prazer é multicolorido, é explícito, é pervertido. Alimentamos por aqui a
cultura de frutas, belas e gostosas. O melhor das pessoas se alcança na fome. Joga-se
fora o bagaço. Quem sou eu? Talvez não esteja mais que seduzido pela cantoria
das sereias. É preciso se amarrar à haste do navio, nos ensinou o astuto
Odisseu. Desligo a TV e deito na cama. Não há sons ou imagens, mas trago a
cultura em mim. É preciso cultivar outras searas, novos terrenos, diferentes
desse árido clima de oásis que por aqui nos ilude. Talvez a cantoria das ruas
seja abafada por sinfonias para violino. Violinos, não violões – porque,
desgraça, os últimos já me deixam dormir pervertido.
Inverno, 27 de junho de 2014