Por que estas pulsões ocêanicas?

Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?

***

A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012


A atividade mais necessária e mais desprezada hoje em dia: conseguir perceber o que é verdade e o que não é naquilo que as pessoas dizem, não tanto as do nosso cotidiano, mas sobretudo as ditas autoridades em qualquer assunto, políticos, médicos, propaganda. Um pouco mais de Foucault para o próximo ano!

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Manifesto do homem - ou qualquer coisa que nos diz respeito




Se observamos o desenrolar da cultura humana, veremos que o homem, no que lhe cabe, encontra-se inexoravelmente vinculado ao lógos – à linguagem e à capacidade racional de construí-la – e é nele que sua essência se dá melhor a conhecer. Naturalmente, essa condição é falha, mas por ser o único modo que temos de nos tornarmos humanos, recusá-la é abdicar de nossa natureza, é recusar o que nos compete nesta vida: em suma, é deixar que nossa existência acabe por sucumbir ao mesmo papel que uma pedra ou uma vaca desempenham no mundo – o de servir ao bel-prazer de quem tem consciência para delas usufruírem. Dito de outro modo: aquele que despreza o caminho do aperfeiçoamento de si mesmo por meio da linguagem, servirá como pasto ou ovelha, mas nunca como pastor.
É fácil constatar esta verdade, sobretudo no modo como hoje lidamos com nossas opiniões. Qualquer um poderia rapidamente assentir que a ciência hoje é uma autoridade em muitos aspectos, por vezes determinantes para a maneira como levamos nossas vidas. Vemos a autoridade científica ditar aquilo que comemos ou devemos comer, onde e como devemos residir, o que fazer para mantermos a saúde do corpo e do espírito. Mas de onde procede tal autoridade? Não sem demora, inúmeros protestos seriam feitos se, por exemplo, certa casta religiosa, ou política, determinasse a necessidade de comer ou não um alimento qualquer. Mas poderíamos conceber um protesto desse tipo para uma orientação científica? Alguém se disporia a protestar contra a sugestão de que carne vermelha faz mal à saúde? Na verdade, tomamos as pesquisas veiculadas pelos meios de informação como uma verdade, como um fato que deve ser seguido sem o mínimo de receio ou dúvida, e isso porque o modo como são divulgadas nos sugerem exatamente esta sua condição de serem como que impassíveis de dúvidas. Mas como? Não nasceu a ciência moderna exatamente com a dúvida? De que maneira chegamos a aceitar como verdade indubitável aquilo que se dispôs, de certa forma, a sanar dúvidas de uma forma meramente provável? Há, sem dúvidas, alguma coisa errada.
Mas quem hoje se preocuparia em pensar sobre isso – quem hoje ainda se preocupa em pensar? A situação na qual vivemos é fruto direto da desmotivação que sentimos em pensar sobre nós mesmos, sobre o modo como devemos levar nossa vida e o que devemos fazer para melhor usufruirmos dela. Formamos, hoje mais que nunca, nossas opiniões como se as comprássemos de jornais e revistas, como se paga a uma prostituta pelo prazer sem esforço – numa bela imagem criada por Wagner para descrever a degradação do homem moderno. É mais cômodo procurarmos a opinião de outrem sobre aquilo que desejamos saber, que nos havermos com a dificuldade de pensarmos por nós mesmos. Nunca, em nenhuma outra época, a mídia teve tanta força quanto em nossos dias, oferecendo opiniões e informações como um cafetão oferece suas crias. Nunca, em nenhuma outra época, a leitura se degradou a ponto de embotar o pensamento com opiniões deveras unânimes e igualitárias, como as veiculadas pelos jornais e pelas revistas. A ciência tem sua autoridade nascida desse estado de coisas, e é um tanto engraçado perceber de que modo a filosofia é aventada em nossos dias, em todo lugar, como uma espécie de postura crítica frente ao domínio autoritário – de quem mesmo?
Mero engano. Não há nada de crítico na filosofia praticada e divulgada hoje, e por isso ela é praticada e divulgada sem complicações. O homem se rebaixou a não querer pensar: livros de auto-ajuda instruem e ensinam, sem complicações; professores transferem o conteúdo de suas disciplinas como blocos de conhecimento, de todo coerentes e condizentes com a realidade do mundo; os meios de comunicação agridem todo aquele que deseja pensar por si mesmo, já que sua intenção é formar de modo unânime a ‘opinião pública’. E não é essa ‘opinião pública’ formada exatamente pela falta de leitura do homem moderno – quer dizer, pela falta de uma leitura crítica e engajada na busca pelo próprio conhecimento? O que dizer da nossa linguagem, a cada dia mais empobrecida? Que português ousamos falar – mais ainda, escrever, que já não consegue entender as obras de Machado? Quem ainda se dispõem a gastar seu tempo em frente a um livro que não seja o último lançamento, que não veja na leitura um fardo, mas um caminho para se desenvolver? Que cristão pode se dizer um leitor da Bíblia? Que comunista poderia bater no peito e anunciar “eu li Marx”? Quem chegaria à conclusão de que sua vida é muito importante, e ao invés de deixar-se levar por ela, tomaria como guia a necessidade de vivê-la da melhor maneira, não seguindo a opinião alheia, mas a sua própria razão?
Mas um ano se encerra, outro se inicia. E nada haverá de diferente sob o sol, se não deixarmos nossa própria alma falar mais alto. Se não compreendermos a verdade que a filosofia nos veio anunciar: que aquele que não vive uma vida refletida não é digno de viver.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Almas e corpos



Quando se olhou no espelho, por alguns instantes, percebeu trazer em si duas almas, talvez mesmo um protótipo grosseiro daquelas sobre as quais Machado já havia discursado, mas que se lhe pareciam muito mais reais que no conto, muito mais grosseiras, exigentes. Umas delas me olhava com curiosidade, como se percebesse que minha natureza não se manifestava à primeira vista. Permanecia oculta, uma outra espécie de alma, aquela que os olhos não veem, mas sente o coração, porque mais próxima de nossa convivência íntima, porque mais próxima do coração selvagem que trazemos encoberto pela fina camada de pele chamada sociedade. Duas almas, dois papéis, duas intenções. Não se poderia alegar outro motivo para a cisão, a crise que Paulo sentia em si mesmo, ao dizer “faço o que não quero, e o que quero não faço”: haverá alguma possibilidade de se confluir ambas em uma só carne, em um só propósito?
A alma externa é aquela que se mostra – as pessoas encaram, procuram entender os ditos e feitos expressivos, sempre na tentativa, porém, de alcançar o inexprimível, aquilo que se oculta sob o lençol, por baixo dos panos e das roupas íntimas que se usa, é bem verdade, para esconder a vergonha de nossa nudez. Uma nudez que já é outra alma, mais profunda e indefinível, mais submersa ao subsolo da subsistência, desconhecida de todos, mesmo daquele que a possui. A eterna luta contra os instintos, encampada por uma filosofia da racionalidade, revela já sua existência, os perigos que alimenta pela sua fome: os desejos, dirá a psicologia, inconscientes são indomáveis; são como dois corcéis a conduzir uma biga em direções opostas, conta-nos Platão, a ver no desejo pela beleza a raiz de todos os males, e sua única possibilidade de salvação. De muitos corpos belos pode-se chegar a ver a beleza em si mesma, imutável e divina – mas o trajeto não é garantido. Muito poucos se habilitam a esta inspiradora ascensão. A alma externa chama mais a atenção, o mundo social é mais imediato, a beleza que se vê é mais crível. Talvez tenhamos todos um pouco de Tomé em alguma das almas.
  Esta relação que trazemos em nossas almas, entre os instintos selvagens, por vezes desmedidos e desumanos pela beleza, e a possibilidade de por meio dela nos salvarmos, é por demais revelador. Se desejamos ardentemente algo nesta vida, este algo é a beleza – a beleza própria e de outros, da vida e do mundo, do corpo e da alma. Em nenhum outro fato se encerra a crise do espírito humano: deseja-se uma beleza que sempre se apresenta pelo mundo bastante superficial, e constatamos que deva ser ela, em sua divindade, inalcançável. O desejo sexual que joga o corpo contra si mesmo e contra outros corpos, atraído sobretudo pela voracidade que a alma interna lhe submete à beleza, ao encanto de uma rapariga em flor, nua sobre a cama, inteira e decididamente disposta não a uma ascensão ao inesgotável do prazer, mas ao declive a pouco e pouco nos meandros da ausência angustiosa de si mesmo, é a expressão mais fiel da inutilidade de uma busca pela beleza que se resuma aos muitos corpos belos – no fundo, uma hidra de sete cabeças que, como na mitologia, faz de uma cabeça cortada nascer outra.
No impulso sexual, ao que parece, ambas as almas entram em conflito para a mútua perdição. A alma externa, nutrida de boas imagens e belos corpos à vista, cede ao íntimo da outra alma os influxos que lhe induzem a perder-se em meio à multiplicidade cinematográfica de um bacanal à la Calígula, em que a variedade de sensações resume uma mais imediata conquista daquela beleza desejada. Mas por querer a alma interna justamente uma beleza única, capaz de satisfação plena, não superficial ou transitória, a crise entre a fome interna pelo belo e a sua realização sexual em diferentes corpos subjuga ao prazer carnal, carnaval, aquele outro prazer, mais profundo e tão demasiadamente humano quanto sobre-humano, de se enroscar com a beleza em si mesma, divinal. Frequentar o jardim das delícias do mundo epicurista é, no fim das contas, padecer no paraíso.
Como então chegar a reunir as duas almas em uma – se isto é possível nesta vida ou somente naquela outra, que segue a morte carnal? Ele no fundo não sabia responder, tamanha dissensão que sentia em si mesmo, ao olhar-se no espelho, já agora totalmente nu. A voz da bela moça sobre a cama lhe oferecia uma noite de prazer. Sua vontade de possuí-la era já incontrolável quando se deu conta de repente da reflexão aqui narrada, das duas almas que trazia em si, do desconforto em vê-las conflitantes. O pior de tudo, porém, era ainda não ter uma resposta segura, que lhe pudesse garantir a união disto que percebia desconcertado. Mas se as almas não condiziam em suas promessas, o corpo de certa forma era único, e apelava tão-somente para a realização de sua vontade mais imediata.
– Não será, talvez, esta distinção mero produto deste corpo aqui?
A beleza, em si mesma única, não poderia ser muito diferente da variedade que se dá a olhos vistos. A visão nos constrange à perdição, tanto quanto nos revela o caminho que conduz ao paraíso. Entregar-se ao prazer é provar, por pouco que seja, o alimento sagrado da alma, que não é dado ao paladar sentir, mas ao coração. Não somos duas almas: somos um corpo que carrega em seu mais íntimo a semente do divino.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

As loucuras da vovó maquiavélica



O Lula enlouqueceu! A constatação é de Arnaldo Jabour, mas bem poderia ser de qualquer espectador das últimas novidades na política brasileira. É bastante conhecido o provérbio que diz “de médico e louco, todo mundo tem um pouco”, mas a saúde debilitada do senhor excelentíssimo ex-presidente da República parece ter afetado inclusive seus neurônios. Não, isto não é ironia – a questão é que boa parte do que acontece hoje no mundo, inclusive e acima de tudo no Brasil, tem se mostrado, quando dito, constantemente acrescido de um sentimento do ridículo, próprio daquelas épocas da história humana em que os fatos não condizem mais com aquilo que se esperaria deles: antes, contradizem de tal forma nossas expectativas que só podemos, em certa medida, desacreditá-los, e no fim, devido à falta de lógica dos agentes envolvidos na situação, rir do grotesco escancarado.
É bem verdade que se pode dar boas gargalhadas ouvindo os últimos noticiários – em que se apregoa cuidados com o planeta, beirando o catastrófico, apenas para provocar à ação quem menos degrada o meio ambiente, ou seja, a sociedade civil; ou então no vislumbre, diria mesmo horripilante, de uma CPI que se constrange a si mesma toda vez que intenta investigar mais a fundo o lamaçal de corrupção que desce “cachoeira abaixo”. O mais surpreendente, no entanto, é ver o senhor Lula tecer suas redes de influência corruptora de modo tão explícito que o riso latente nos lábios do povo só pode significar uma coisa: estamos diante de uma dominação descarada do aparelho estatal por parte do PT, que não medirá esforços, nas palavras do próprio Lula, para se manter no poder, custe o que custar.
Mas seria mesmo esse o significado do riso que esboçamos ao ver o ex-presidente ao lado de Maluf, aliando-se aos mais podres da política para satisfazer sua ambição à la Maquiavel? É provável que o povo nem chegue realmente a se dar conta do que vê, e ria de tudo isso apenas porque constate aquilo que já sabia faz tempo: que só a corrupção prevalece nestas terras. Contudo, mesmo inconscientemente, o espírito tupiniquim pode diagnosticar a loucura do seu semelhante medindo-a pela sua própria: nossa falta de preocupação com a política, com o que se faz dela por aqui, espelha o sorriso que damos ao ver uma cena como esta da foto. Rimos da loucura de nossa política pela nossa própria loucura em não nos preocuparmos com a política! E o que nos sobra? – Bem, temos praias, cerveja, carnaval. E quando tudo parece meio doido lá fora, o médico que há em nós foge em direção à loucura de nos deixar levar pela vida, de churrasco em churrasco, ao som dos pagodes de quintal ou do “batidão” que, muito sagazmente, denuncia: a vovó que ficou maluca incorporou no líder do PT. Quando o senhor Lula aparecer de peruca, ninguém mais terá dúvidas: rir é o melhor remédio.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

A política em berço esplêndido


Que as cachoeiras venham abaixo! A farsa está instalada: o exercício retórico dos seus atores será mais uma vez boa diversão para os aficionados em aprender a técnica da oratória. Se a CPI tem razão de ser instalada, e se ela tem mostrado, mais que denúncias de envolvimentos de parlamentares com um bicheiro, um sórdido e, diria mesmo, cotidiano esquema de corrupção, da empresa Delta junto a obras do Governo (petista ou de seus aliados, na maioria dos casos), o alvoroço da mídia sobre ela esconde uma verdade que muitos ainda não se deram conta: o Governo tem feito pouco caso dos possíveis resultados de mais uma CPI contra a corrupção. Para um partido que tenha tido a capacidade de sobreviver às denúncias grotescas do senhor Roberto Jefferson sobre o mensalão, em 2005, parece desnecessário se preocupar com eventuais alardes sobre sua veia corrupta. No fundo, é pelo mote do "rouba mas faz" que a sequência de governos petistas tem ensinado aos mais novatos que não é possível fazer política honestamente, que a corrupção é inerente aos jogos de poder, e que aquele que não se sujar não pode realizar nada de significativo para a população.
Teríamos então que perguntar - o que o Governo vem fazendo, sob o alegado mote, para o bem da população? Enquanto a CPI engatinha seus primeiros passos, a senhora Dilma aprovou junto aos bancos estatais um corte nos juros bancários, numa clara, e mesmo anunciada, ofensiva contra o sistema bancário do país. Isso é lá uma aposta e tanto para agradar o contribuinte! Mas será que agradaria igualmente sabermos que a dita empresa Delta, ameaçada pelas denúncias da Polícia Federal e agora da CPI, está em vias de ser comprada pelo grupo J&F Holding, cujo conselho consultivo é presidido pelo ex-presidente do Banco Central, o senhor Henrique Meirelles, e que é o grupo controlador do frigorífico FBS, cujo patrimônio possui um terço de investimento do BNDES? Talvez não seja tão animador pensar que é o nosso dinheiro que paga o teatro político em Brasília, e que agora arcará com as despesas de empresas falidas devido a denúncias desta mesma política paga por nós. No fim das contas, se tivéssemos ouvidos para ouvir, a voz ressonante do "rouba mas faz" teria dado origem a sua verdadeira voz: "põe na conta do povo, que tá tudo certo". O que nos impede de ouvi-la? Deve ser o barulho constante das águas descendo cachoeira abaixo.
Num futuro próximo, talvez o que nos impeça de ouvir não seja exatamente a nossa incapacidade para nos darmos conta do que acontece frente aos nossos olhos. O próximo plano político do partido do Governo, abusivamente anunciado pelo presidente do partido Rui Falcão, está em afrontar a mídia com um regime - diriam os russos e alemães, com uma boa experiência nessa área - totalitário em sua essência. Quem não desconfia que o PT só entrou na política para realizar o socialismo a qualquer custo, e quem ainda não percebeu que as experiências socialistas não foram as mais desejáveis, não poderá ouvir nem ver os próximos atos desta "Comédia de erros".

domingo, 6 de maio de 2012



Existem aqueles que vivem por prazer ou pelo sucesso, e se precupam excessivamente consigo mesmos; existem aqueles que vivem pelos outros, e agem como que gratuitamente a fim de realizarem o bem. Todas estas três formas de realização existencial são em si mesmas insatisfatórias: o segredo não está em viver por esses bens, quaisquer sejam eles, mas em encontrar o bem de estar vivo e de poder viver por aquilo que se deve viver. A existência é o maior dos nossos bens.

Soneto em tributo à Afrodite



A vida para ali, quando ela passa
meu corpo cala só - como se perdesse
o ar, naquele encanto que esfumaça
a pretensão de um amor igual a esse

Inigualável em essência, inimitável
forma de dar à luz esta divindade
do amor, apaixonado - imperdoável
a quem ofende sua nobre santidade.

Imaculado, o meu desejo em chama
arde no peito, coração, na cama,
não vendo a hora de ser consumado:

o altar preparado para o delírio,
a forca pronta, este cruel martírio -
pudera viver sempre arrebatado.

Aborto e outras mortes desumanas...


Um ser humano encontrado em uma floresta perdido, por volta dos seus oito ou nove anos, sem ter nenhum tipo de comunicação anterior com sociedades, sem ter aprendido a falar e a pensar como nós, desprovido de cidadania, desprotegido em meio à selva da vida. É justo matar este ser a partir da opinião de que ele não é "humano"? O que esse "humano" quer dizer? Ausência de pleno desenvolvimento, em um indivíduo de uma determinada espécie, das capacidades possíveis àquela espécie é razão para não classificá-lo como a ela pertencente? Uma criança ou um idoso profudamente debilitado não são mais humanos porque não dotados da capacidade de exercerem plenamente suas possibilidades? É razão suficiente para matar alguém que ele ainda não ou não mais apresente as propriedades plenas do "humano"? Qualquer tentativa de justificar a morte de um feto ainda não barriga da mãe esbarra na mesma consideração.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

O mundo por trás do mundo


Existe no mundo cultural - quer dizer: no âmbito da divulgação e produção de ideias veiculadas nacional e mundialmente, o que se poderia chamar de duas camadas de opiniões, inegavelmente interrelacionadas, e que em determinadas épocas se interpõem e se chocam; em outras, colaboram incessantemente. Abusando dos termos próprios às religiões e sociedades secretas, poderíamos dizer que uma camada seria esotérica - ou seja, aquela em que as ideias e opiniões circulantes são condizentes com os fatos e as intenções reais de quem os analisa ou realiza - enquanto a outra seria exotérica - disposta ao público em geral, veiculada massivamente, e que pode ter ou não relação fidedigna com a camada esotérica. Quer-se dizer com isso que no conjunto das opiniões que apreendemos na sociedade, algumas delas dizem respeito de fato ao que acontece, enquanto outras são apenas modos diferentes de se dizer, eufemística e adulatoriamente, o que de fato acontece. Como alguém que prega aos quatro ventos aquilo que ele mesmo está longe de praticar, o mundo das ideias culturais vive uma esquizofrenia aguda. Se em determinadas épocas a relação entre as duas camadas poderia se dar por vezes de modo inconsciente ou não planejado, hoje se percebe uma crescente capacidade de articulação intencional entre as duas, e o que é pior: no sentido de fazer com que a camada exotérica veicule e apresente ideias e opiniões que distorcem propositalmente os aspectos escusos e esotéricos daquilo que tem acontecido de fato.
Para ilustrar o quadro atual, nada melhor do que perder alguns minutos de nosso precioso tempo frente à televisão: em qualquer telejornal brasileiro, o modo como as reportagens são escolhidas, editadas e veiculadas é já uma amostra daquilo que se poderia chamar a intenção exotérica de mostrar as notícias - enquanto aquilo que de fato acontece permanece nos bastidores: ou drasticamente recortado pelas edições, ou absurdamente negado enquanto digno de ser notícia. O caso Obama é exemplar, mas não é o único: as águas têm descido cachoeira abaixo, sem sequer serem compreendidas em todas as suas implicações pelo cidadão leigo em política. É preciso ter algum faro para linguagem tendenciosa e retórica, algum treino mais apurado em filosofia, para perceber que as imagens e frases ditas pelo aparelho de TV e jornais brasileiros não são uma denúncia do que tem acontecido, mas uma escolha certeira daquilo que querem que acreditemos ser o que de fato tem acontecido. Se nós, pobre mortais, não podemos participar do jogo esotérico do poder, sobra-nos a ressalva importante de avaliarmos que espécie de saber político pode ser apreendido pela confrontação das muitas notícias exotéricas. Mas um trabalho como esse, senão impossível de ser realizado pelo cidadão comum, deveria ser objeto de estudo constante daquele que aspira à filosofia, tal como Sócrates e Nietzsche nos ensinaram: a busca incansável pela verdade. Quem se habilitaria a uma missão como essa, em um país abandonado aos corvos? O Brasil carece de filósofos - porque nem sequer sabe o que isto quer dizer.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Diálogos com a physis V



- Já dizia aquele sambinha nosso de cada dia, "ta tudo virado de pernas pro ar"!
- Como assim?
- Não lê jornais?
- E eles lá dizem grande coisa?
- Pois é, o problema é esse. Eles não dizem o que está acontecendo... Há a instauração de uma ordem mundial, que estão nos fazendo engolir goela adentro, sem sequer suspeitarmos que antes de ser um remédio, ele parece um veneno. À força, somos coagidos a concordar com o que se faz na ONU e, em servidão subsequente, no Estado brasileiro. A mente das pessoas tem sido vilipendiada a todo instante, com propagandas que invertem a ordem natural das coisas, que nos levam a enxergar o que de fato não estamos vendo!
- E isso não é bom?
- Seria, se o que nós não estivéssemos vendo fosse a verdade, não a mentira.
- Essas distinções metafísicas não existem mais!
- Acredita mesmo nisso? Acredita que ou tudo é mentira ou tudo seja verdade?
- Quem nos pode dizer o que é uma coisa ou outra?
- Nossos olhos! Veja: nosso país foi abençoado com inúmeras riquezas, mas sejamos sinceros, a benção não é nossa e sim dos outros, porque além de ricos somos estúpidos e ignorantes - Que entrem e levem tudo, é o que dizemos: só queremos o mínimo para poder viver bem, ser feliz e sambar...
- Ah, não fale mal do nosso espírito alegre! Somos o povo mais feliz do planeta!
- E isto não deixa de ser uma estupidez...
- Como você pode falar isso?
- Eu vejo!

O advento da ditadura secreta

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 28 de março de 2012

Escolados pelo precedente do Foro de São Paulo, cuja existência lhes foi ocultada durante dezesseis anos pela mídia soi disant respeitável, alguns leitores brasileiros talvez não se sintam tão espantados ao ver que o New York Times, o Washington Post, a CNN e demais organizações jornalísticas de maior prestígio nos EUA, mesmo depois do pito que levaram do Pravda, continuam sonegando ao público qualquer notícia sobre os documentos forjados de Barack Hussein Obama.

Nos dois casos, a recusa de cumprir a mais primária obrigação do jornalismo pode se explicar, de início, pela reação automática de ceticismo ante condutas que, de tão perversas, maliciosas e abjetas, parecem inverossímeis. Quem poderia acreditar, assim sem mais nem menos, que a esquerda, desmoralizada e aparentemente moribunda após a queda da URSS, estava preparando um retorno triunfal na América Latina por meio de um acordo secreto entre organizações legais e criminosas, planejado para controlar, pelas costas do eleitorado, a política de todo um continente? Quem poderia engolir, na primeira colherada, a hipótese de que um bandidinho com identidade falsa, subsidiado por bandidões, ludibriou a espécie humana praticamente inteira e, da noite para o dia, saiu do nada para se tornar presidente da nação mais poderosa do mundo? É mesmo difícil. Mas quando nem mesmo o acúmulo incessante de provas inquestionáveis demove do seu silêncio obstinado os profissionais que são pagos para falar, então é impossível evitar a suspeita de que o engodo geral não foi tramado só por políticos, mas também pelos donos de jornais, revistas e canais de TV, secundados pelo proletariado intelectual das redações.

No entanto, como qualquer pessoa com mais de quinze anos tem a obrigação de saber, não há nada que esteja tão ruim que não possa piorar. Depois de ocultar a maior fraude política de todos os tempos, a mídia americana passou a esconder até decretos oficiais do governo Obama, que assim são impostos a toda uma população desprovida do elementar direito de saber que eles existem. Os leitores mais velhos devem se lembrar de que a nossa ditadura militar inventou, um belo dia, um treco chamado “decreto secreto”, que entraria em vigor sem precisar ser publicado. Inventou-o mas, que eu saiba, não teve a cara-de-pau de chegar a usá-lo. Pois bem, graças às empresas de comunicações de Nova York e Washington, essa coisa, essa deformidade jurídica inigualável, está em pleno uso na mais velha e – até recentemente – mais estável democracia do mundo.

Quando o amor fanático da classe jornalística a um político se coloca descaradamente acima da Constituição, das leis, da segurança nacional e de todas as regras básicas da moralidade, não há como explicar isso pela mera preferência espontânea dos profissionais de imprensa, por mais obamistas que eles comprovadamente sejam. Alguns jornalistas chegaram a queixar-se ao chefe da Comissão Arpaio, Michael Zullo, de que haviam recebido ameaças diretas do governo para que nada publicassem das investigações. Artigos a respeito foram misteriosamente retirados até de sites conservadores como www.townhall.com, e uma entrevista marcada com Jerome Corsi, o incansável investigador da fraude documental, foi suspensa na Fox News por ordem explícita da diretoria. Com toda a evidência, o bloqueio vem de muito alto, envolvendo tanto funcionários do governo quanto potentados da mídia.

Quando se conhece, porém, o conteúdo dos decretos ocultados, vê-se que a coisa é infinitamente mais grave do que o simples boicote organizado do direito à informação. Em 31 de dezembro, quando o povo estava distraído festejando o Ano Novo, Obama assinou o Defense Authorization Act, que lhe dava, simplesmente, o direito de mandar matar ou de prender por tempo indefinido, sem processo nem habeas corpus, qualquer cidadão americano. No crepúsculo da sexta-feira, 16 de março, veio uma ordem executiva (o equivalente da nossa “medida provisória”, com a diferença de que não é provisória) que confere ao presidente os poderes necessários para estatizar, a qualquer momento e sem indenização, todos os recursos energéticos do país, incluindo as empresas de petróleo, mais a indústria de alimentos, e ainda para instituir quando bem deseje, sem autorização do Congresso, o recrutamento militar obrigatório. Em suma: o homem deu a si mesmo poderes ditatoriais, e nas duas ocasiões fez isso em momentos calculados para desviar as atenções e frustrar a divulgação. A precaução acabou por se revelar desnecessária: jornais e canais de TV, levando a solicitude até o último limite do servilismo totalitário, não publicaram praticamente nada a respeito, de modo que, com exceção daqueles que já voltaram as costas à mídia elegante e preferem informar-se pela internet, os americanos, tendo adormecido numa democracia, acordaram numa ditadura sem ter a menor idéia do que havia acontecido (v. os comentários de Dick Morris em http://www.dickmorris.com/obama-assumes-dictatorial-powers/).

Não que esta seja a primeira ditadura a ocultar sua própria existência. O segredo, ensinava René Guénon, é da essência mesma do poder. As diferenças são duas:

(1) Pela primeira vez na história do mundo a ditadura secreta é implantada por um ilustre desconhecido cuja identidade permanece ela mesma secreta, bloqueada a todas as investigações.

(2) O episódio evidencia com clareza obscena o fenômeno mundial, a que já aludi muitas vezes, do giro de 180 graus na função da grande mídia, que de veículo de informação se transmutou maciçamente, nas últimas décadas, em órgão de censura e controle governamental da opinião pública.

segunda-feira, 12 de março de 2012

A práxis da Guerra, nietzschianamente falando


Resumo em quatro sentenças - para uma arte da guerra intelectual legítima:
(1) Eu apenas ataco coisas que são vitoriosas;
(2) Eu apenas ataco coisas contras as quais jamais encontraria aliados, contra as quais tenho de me virar sozinho;
(3) Eu jamais ataco pessoas - sirvo-me delas para tornar manifesta uma situação de necessidade comum, mas furtiva e pouco tangível;
(4) Eu apenas ataco coisas contra as quais todo tipo de diferença pessoal é excluído - atacar é uma prova de bem-querer para mim e, conforme a circunstância, de agradecimento.

in Ecce Homo

Pintura: Goya, gravura n36, Desastre de la Guerra

Diálogos com a physis IV

- A um indivíduo capaz de um mínimo de consciência sobre sua condição no mundo, é dado perceber que: (1) ele é algo; (2) há algo de externo a ele, e que não se confunde com ele; (3) ele é capaz de relacionar-se com este algo a ele externo. Em (1), este algo que ele percebe ser subentende (a) o ser algo no mundo, em meio às coisas externas a ele, bem como (b) ser algo que possui a percepção de ser algo, ou seja, a percepção sobre sua própria existência. Deste modo, um indivíduo que vive é capaz de perceber não só a sua existência e a do mundo a ele externo, mas também a de si mesmo enquanto algo que se percebe a si mesmo - condição que o diferencia do mundo de coisas externas a ele. Até aqui, o que o indivíduo presenciou foi uma experiência de si, que subentende e subordina todas as outras que vier a ter a partir de então.
Contudo, na sua relação com o mundo, ele percebe que há outros seres capazes de perceberem-se a si mesmos tal como ele o foi, e que é possível estabelecer um diálogo com eles de maneira satisfatória - ou seja, de maneira que a percepção que ele teve torna-se compreensível ao outro, por meio da linguagem. Neste momento, inicia-se o que chamamos de cultura, e que mais uma vez irá subentender e subordinar todas as demais experiências que se lhe sucederem.

- O que é isto?
- Estou iniciando qualquer filosofia possível...
- Mas como? Não é a filosofia mesma uma discussão sobre ideias e conceitos universalmente válidos, compreensíveis a todas as pessoas? Esta 'sua filosofia' não restringe em demasia o âmbito da discussão ao puramente subjetivo?
- Sua pergunta já mostra o pouco entendimento que minhas palavras surtiram em seu espírito. E se não há entendimento, não há filosofia.
- Mas não há entendimento justamente porque você usa as palavras à sua maneira. É necessário um acordo prévio sobre o que entedemos por cada palavra que usamos, senão...
- Então não precisamos de filosofia, mas de um bom dicionário. Acho que o Houaiss é suficiente neste caso...
- Lá vem você de novo com sua ironia!
- Só a ironia pode fazer frente ao trágico da situação a que chegamos.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Preconceitos prejudiciosos e prejudiciais


Nieztsche dizia que o psicólogo tem de afastar a vista de si para enxergar - em outras palavras, afastar-se do eu imóvel e substancial para entender-se dialeticamente lançado ao movimento do mundo e das coisas à volta - do mundo e de nós mesmos, por certo, mas um movimento que esconde algo essencial, na verdade que o revela, a despeito do vir a ser eterno, ou por causa dele: o mundo do movimento e do ser-e-não-ser é em suma o mundo do ser no tempo, da essência no acidental, da forma no material. E todo psicólogo que se preze, ao olhar para o mundo e para o outro, tece sobre seu olhar as considerações mais inerentes à própria alma. Neste ponto, afastar-se de si é em suma encontrar-se no mundo. E é neste movimento que me encontro, e a ele tenho entregado o grosso das horas de meus dias. Mas não é isso um perder, um deixar de viver? A pergunta que deveria ser feita é esta - Há outra vida a ser vivida? Sócrates tinha razão, a despeito de Nietzsche.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Péssimo Brado Retumbante!


Péssima - é a palavra para definir a série que a Globo apresenta, tentativa frustrada de entreter o público com as façanhas da política. A série peca não tanto pela atuação precária e delirante de iniciantes e veteranos, mas pela tentativa de sustentar como "política" aquela encenação surreal e farsesca que poderia ser aventada como tema, mas que passa ao longe dos verdadeiros conflitos de governo. As situações familiares - porque afinal é nisso que se encerra a série - daquele que alcança repentina e grotescamente o cargo de presidente tomam a dianteira para trazer, em algo que já parece ter sido percebido por alguns, as reais tentativas Globais, não de mostrar o papel de um verdadeiro político e de como se deve fazer política, mas sim preparar a mente ignorante das pessoas intelectuais - afinal, dificilmente o povão estará acordado para vê-la depois do BBB - para as próximas eleições que enfretaremos. Se não fóssemos tão débeis, os televisores desligados seriam uma unanimidade nacional.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Mario Ferreira dos Santos entre nós...

A obra de Mario Ferreira dos Santos, embora de uma vastidão invejável a qualquer Descartes ou Kant, permanece quase que inteiramente desconhecida do grande público de letras do Brasil. E isso se deve a várias razões; uma delas é que o forte apelo de nossa mente tupiniquim pela filosofia estrangeira nos bloqueou a sequer considerarmos a possibilidade de uma "filosofia no Brasil", que dirá a de nomearmos alguém das terras de cá como "filósofo". Obviamente, isto é um preconceito, tão grosseiro quanto qualquer definição que se possa fazer de o que seja a filosofia, sem incorrer em uma limitação pavorosa. Somos tão capazes de pensar o mundo e a nós mesmos como qualquer ser antropológico habitante deste planeta. Fazemos questão, no entanto, de nos atermos ao produto pronto, importado via terceiros, que tem massificado e alienado nosso pensamento frente às reais possibilidades que temos de compreendermos o homem e contribuirmos para o desenvolvimento da humanidade.
Outra razão de tamanho descaso está em que, aqueles poucos que se sentiram e se sentem agraciados por terem encontrado uma figura tão singular em solo brasileiro, se pensarmos o que pensamos de nós mesmos enquanto país, fazem muito pouco para resplandecer a luz de Ferreira aos menos afortunados. Até o momento, existiam apenas reedições de 4 dos seus livros, donde apenas um deles é imprescindível para a compreensão de seu legado enquanto filósofo: Lógica e Dialética é alguma coisa de bastante oportuna aos ares pouco frescos da mente filosófica atual, e sequer nos foi apresentada em uma edição cuidadosa e crítica, como se exigem os padrões atuais de publicação. Com muitos erros de impressão, notas confusas e mal trabalhadas, e uma introdução que beira ao folhetim muito mais que ao padrão de uma obra como esta que se dá a introduzir, o livro Lógica e Dialética se perde entre os demais livros da editora cristã Paulus como mais um livro. Se não fosse a iniciativa da editora É realizações, que vem publicando outras tantas importantes obras filosóficas, desconhecidas do público brasileiro, inclusive a de Mário Ferreira dos Santos, teríamos que lamentar esse descaso monumental com alguém que merecia uma apreciação, senão devocional, ao menos honrada.