Se
observamos o desenrolar da cultura humana, veremos que o homem, no que lhe
cabe, encontra-se inexoravelmente vinculado ao lógos – à linguagem e à
capacidade racional de construí-la – e é nele que sua essência se dá melhor a
conhecer. Naturalmente, essa condição é falha, mas por ser o único modo que
temos de nos tornarmos humanos, recusá-la é abdicar de nossa natureza, é
recusar o que nos compete nesta vida: em suma, é deixar que nossa existência
acabe por sucumbir ao mesmo papel que uma pedra ou uma vaca desempenham no
mundo – o de servir ao bel-prazer de quem tem consciência para delas
usufruírem. Dito de outro modo: aquele que despreza o caminho do
aperfeiçoamento de si mesmo por meio da linguagem, servirá como pasto ou
ovelha, mas nunca como pastor.
É fácil
constatar esta verdade, sobretudo no modo como hoje lidamos com nossas
opiniões. Qualquer um poderia rapidamente assentir que a ciência hoje é uma
autoridade em muitos aspectos, por vezes determinantes para a maneira como
levamos nossas vidas. Vemos a autoridade científica ditar aquilo que comemos ou
devemos comer, onde e como devemos residir, o que fazer para mantermos a saúde
do corpo e do espírito. Mas de onde procede tal autoridade? Não sem demora,
inúmeros protestos seriam feitos se, por exemplo, certa casta religiosa, ou
política, determinasse a necessidade de comer ou não um alimento qualquer. Mas
poderíamos conceber um protesto desse tipo para uma orientação científica?
Alguém se disporia a protestar contra a sugestão de que carne vermelha faz mal
à saúde? Na verdade, tomamos as pesquisas veiculadas pelos meios de informação
como uma verdade, como um fato que deve ser seguido sem o mínimo de receio
ou dúvida, e isso porque o modo como são divulgadas nos sugerem exatamente esta
sua condição de serem como que impassíveis de dúvidas. Mas como? Não nasceu a
ciência moderna exatamente com a dúvida? De que maneira chegamos a aceitar como
verdade indubitável aquilo que se dispôs, de certa forma, a sanar
dúvidas de uma forma meramente provável? Há, sem dúvidas, alguma coisa
errada.
Mas
quem hoje se preocuparia em pensar sobre isso – quem hoje ainda se preocupa em pensar?
A situação na qual vivemos é fruto direto da desmotivação que sentimos em
pensar sobre nós mesmos, sobre o modo como devemos levar nossa vida e o que
devemos fazer para melhor usufruirmos dela. Formamos, hoje mais que nunca,
nossas opiniões como se as comprássemos de jornais e revistas, como se
paga a uma prostituta pelo prazer sem esforço – numa bela imagem criada por
Wagner para descrever a degradação do homem moderno. É mais cômodo procurarmos
a opinião de outrem sobre aquilo que desejamos saber, que nos havermos com a
dificuldade de pensarmos por nós mesmos. Nunca, em nenhuma outra época, a mídia
teve tanta força quanto em nossos dias, oferecendo opiniões e informações como
um cafetão oferece suas crias. Nunca, em nenhuma outra época, a leitura se
degradou a ponto de embotar o pensamento com opiniões deveras unânimes e
igualitárias, como as veiculadas pelos jornais e pelas revistas. A ciência tem
sua autoridade nascida desse estado de coisas, e é um tanto engraçado perceber
de que modo a filosofia é aventada em nossos dias, em todo lugar, como uma
espécie de postura crítica frente ao domínio autoritário – de quem mesmo?
Mero
engano. Não há nada de crítico na filosofia praticada e divulgada hoje, e por
isso ela é praticada e divulgada sem complicações. O homem se rebaixou a não
querer pensar: livros de auto-ajuda instruem e ensinam, sem complicações;
professores transferem o conteúdo de suas disciplinas como blocos de
conhecimento, de todo coerentes e condizentes com a realidade do mundo; os
meios de comunicação agridem todo aquele que deseja pensar por si mesmo, já que
sua intenção é formar de modo unânime a ‘opinião pública’. E não é essa
‘opinião pública’ formada exatamente pela falta de leitura do homem moderno –
quer dizer, pela falta de uma leitura crítica e engajada na busca pelo próprio
conhecimento? O que dizer da nossa linguagem, a cada dia mais empobrecida? Que
português ousamos falar – mais ainda, escrever, que já não consegue entender as
obras de Machado? Quem ainda se dispõem a gastar seu tempo em frente a
um livro que não seja o último lançamento, que não veja na leitura um fardo,
mas um caminho para se desenvolver? Que cristão pode se dizer um leitor da
Bíblia? Que comunista poderia bater no peito e anunciar “eu li Marx”? Quem
chegaria à conclusão de que sua vida é muito importante, e ao invés de
deixar-se levar por ela, tomaria como guia a necessidade de vivê-la da melhor
maneira, não seguindo a opinião alheia, mas a sua própria razão?
Mas
um ano se encerra, outro se inicia. E nada haverá de diferente sob o sol, se
não deixarmos nossa própria alma falar mais alto. Se não compreendermos a
verdade que a filosofia nos veio anunciar: que aquele que não vive uma
vida refletida não é digno de viver.
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