Por que estas pulsões ocêanicas?

Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?

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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.

sábado, 20 de julho de 2013

Crônica de um manifestante






Até gosto de futebol, apenas jogos internacionais, em que se pode torcer pelo Brasil, em que se vê todo o povo unido ao redor da mesma bandeira, diferentes desses jogos regionais, de nossos partidarismos. Não há partidos quando se pensa no país. Talvez seja isso mesmo que parecem ecoar pelas ruas e redes, essa grande – não muito grande, verdade – essa gente que a partir da virtualidade ganhou a geografia das cidades, os pontos-chave de um país entregue ao descaso de seus governantes, aos gastos excessivos e supérfluos, às mordomias do grande capital e à miséria da gente urbanamente inutilizada. Vejo um grito, ouço seus gestos, sentimos o cheiro das desprezíveis carnes humanas a rastejar em busca de um lugar ao sol, num país naturalmente rico e humanamente pobre, paupérrimo, desgraçado. A desgraça é tamanha que devo fechar o computador. A televisão jaz há muito desligada, inexistente. Sinto por alguma razão que não devo gastar luz nem tempo vendo as imagens que outros querem que eu veja. Luz e tempo – se a primeira me consome dinheiro, o segundo... Bem, sinto que não há muito tempo, para nenhum de nós. Saio todo dia de casa rumo ao trabalho, nada essencial, diria mesmo que insignificante, se não fossem as tantas criaturas que sentem um desejo incontido de cuidar mais de seus cães e gatos que de si mesmas ou de seus parentes. Hoje, porém, chegarei mais tarde em casa. As ruas encontram-se fechadas por uma pequena multidão de homens e mulheres portando faixas, cartazes e brados retumbantes, exigindo de nós, por nós, um país melhor. É possível? Não pergunto se é possível um país melhor, mas se por acaso isto seria possível dessa forma. Alguns acham que não. Próximos aos manifestantes, agora dispersos pelo aparato policial, jovens com a cara coberta depredam lojas e placas, voltam-se contra o ônibus que nos levaria de volta para casa – me levaria de volta para o meu reduto dentro de toda essa podridão. E por que deveria voltar a esconder-me? Por que não descer ali mesmo, juntar minhas forças e minha revolta contra esse mesmo país que degenera a passos largos? Por que não vandalizar? As pessoas ao me redor se desesperam com razão, há ameaças de que o ônibus será quebrado, o motorista está desnorteado. Se conseguimos escapar foi por sorte, talvez pela loucura de uma jovem moça que hasteava sua bandeira, aquela mesma que nos estádios serve para que demonstremos nosso amor pelo país. Saímos com vida. Percebi que a bandeira, a garantia de nossa sobrevivência àquela noite, foi capaz de simbolizar muito mais que um amor à nação em tempos de futebol. Suas cores evitaram as ações preto e branco, os radicalismos de quem pensava menos que se revoltava – e contra o que, contra quem? Dias depois estava ali, o país gritando a vitória na final do futebol, e o grito das ruas aos poucos diminuía, era amortecido, estava cansado. Voltava-se ao trabalho e à vida normal, esperando que algum dia o amor ao país nos tempos de futebol se transformasse no amor ao país nos tempos de cólera, dessa doença contagiosa que oprime e deprime ou que se rebela em violência, em afronta física, esse branco ou preto que perde a própria visão das cores que lhe formam, que lhe serviriam de incentivo para se transformar e transformar o país – em quê? O que se quer? Vê-se mais televisão e navega-se mais pelas redes do que se aprende a viver. Deixarei fechado meu computador e esquecida minha TV, continuarei aqui neste meu reduto, neste esconderijo que chamo de lar, e que me isola e me protege, creio, das barbáries do mundo lá fora, de um país desunido e individualista. E não serei também eu tão egoísta? Reclusão não se traduz, em linguagem social, omissão? Que cidadão pode continuar digno de sua cidade quando dela se aparta por interesse próprio? Não! Preciso agir, dar sentido à vida que esta nação me permite viver! Começarei transformando a mim mesmo, lendo tudo o que eu puder sobre o humano e o divino, sobre a eternidade e a história, sobretudo a nossa história, muito pouco conhecida como o é muito pouco conhecida a história de cada um de nós. O dia em que eu conseguir contar minha própria história e for capaz de inseri-la no tecido maior de minha existência, nas redes inevitáveis que me ligam ao país, à humanidade e ao eterno, no dia em que puder hastear sem necessidade de palavras a bandeira de uma existência digna de viver, então nesse dia o país terá ganhado um seu cidadão honrado, um homem deveras brasileiro, que ao invés de berrar nas ruas e nos estádios, fará ecoar a única voz que não precisa do grito para se fazer ouvir: a voz de uma alma frente a si mesma. Enquanto disso não for capaz, não será nas passeatas ou no futebol que demonstrarei o meu amor ao país. Que se gaste tempo e luz consigo mesmo – pois não se pode sonhar com uma nação valorosa que tenha mais gado que homens.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Assim caminha a humanidade...


Quando Sócrates dizia que "virtude é conhecimento" estava enunciando um principio básico da finalidade última da ação humana: para agir corretamente é preciso ter acesso às informações que lhe dizem respeito. A liberdade no bem agir depende dos dados disponíveis para o homem ponderar a decisão mais acertada, e não poucos são os que acreditam que vivemos em uma época de luzes, livres como nunca, porque temos hoje mais acesso a informações. A que informações? Acreditamos mesmo que nos serão dadas todas as informações importantes para nossa decisão acertada? Não parece, antes, que se faz exatamente um acerto prévio do que são consideradas informações importantes, para levar os homens a decidirem o que querem exatamente aqueles que selecionam o que é importante? A atual situação dos meios de informação nos deixa com uma responsabilidade acachapante, muito pouco perceptível para quem nunca se deu ao trabalho de ir procurar as informações mais justas: o homem comum é deixado à sua própria sorte, dividido entre ter de ganhar a vida com trabalho e estudo, e ter ainda de procurar saber se o que está sendo dito por aí é de fato como se diz. Não me espanta que a maior parte da população, atarefada com sua sobrevivência, deixe o trabalho de se informar para os jornais e a televisão, deixando nas mãos de certas criaturas desconhecidas, ocultas por trás das redações, a responsabilidade de decidirem por elas. Imersas em conquistar um lugar ao sol, ou apenas um dinheiro qualquer ao fim do mês, as almas humanas seguem alienadas daquilo mesmo que as torna humanas, quer dizer, o senso de responsabilidade pelas suas decisões. Nesse ponto estão de acordo a doutrina cristã e o pensamento ateu de Sartre, além do sistema jurídico de que dispomos, para dar um exemplo laico. Antes de estar no trabalho e na luta pela sobrevivência, como gostaria o materialismo de Marx, a formação do homem está na sua consciência decisória, a partir da valoração que faz de si e do mundo que o cerca, e sem a qual pode-se chegar a ganhar o mundo inteiro e perder a própria alma. Ainda assim, pensa o homem comum: "não tenho tempo para pensar!" Esse paradoxo flagrante é tão-somente um eco de outro, bem mais profundo, muito próximo da formulação que o pai da filosofia havia dado a partir da frase que trouxemos no início: se "virtude é conhecimento", então "ninguém comete o mal senão por ignorância", e com isso entendemos melhor a miséria de nossos dias, em que as pessoas preferem ser ignorantes, mesmo que isso lhes custe a existência. Afinal, para que se preocupar com o que acontece? Não é muito mais fácil deixar a vida levar, ouvindo o que se diz por aí? Essa coisa de procurar saber e pensar é coisa de desocupado, há uma vida para ganhar lá fora! Não foi o próprio Sócrates quem disse "só sei que nada sei"? Então, deixa a coisa assim mesmo que se melhorar estraga. De minha parte, faço coro com Lulu Santos: "assim caminha a humanidade, com passos de formiga e sem vontade...", com uma única ressalva: as formigas não fazem senão o que lhes é natural.