Até gosto de futebol, apenas jogos internacionais, em que
se pode torcer pelo Brasil, em que se vê todo o povo unido ao redor da mesma
bandeira, diferentes desses jogos regionais, de nossos partidarismos. Não há
partidos quando se pensa no país. Talvez seja isso mesmo que parecem ecoar
pelas ruas e redes, essa grande – não muito grande, verdade – essa gente que a
partir da virtualidade ganhou a geografia das cidades, os pontos-chave de um
país entregue ao descaso de seus governantes, aos gastos excessivos e
supérfluos, às mordomias do grande capital e à miséria da gente urbanamente
inutilizada. Vejo um grito, ouço seus gestos, sentimos o cheiro das
desprezíveis carnes humanas a rastejar em busca de um lugar ao sol, num país
naturalmente rico e humanamente pobre, paupérrimo, desgraçado. A desgraça é
tamanha que devo fechar o computador. A televisão jaz há muito desligada,
inexistente. Sinto por alguma razão que não devo gastar luz nem tempo vendo as
imagens que outros querem que eu veja. Luz e tempo – se a primeira me consome
dinheiro, o segundo... Bem, sinto que não há muito tempo, para nenhum de nós.
Saio todo dia de casa rumo ao trabalho, nada essencial, diria mesmo que
insignificante, se não fossem as tantas criaturas que sentem um desejo
incontido de cuidar mais de seus cães e gatos que de si mesmas ou de seus
parentes. Hoje, porém, chegarei mais tarde em casa. As ruas encontram-se
fechadas por uma pequena multidão de homens e mulheres portando faixas,
cartazes e brados retumbantes, exigindo de nós, por nós, um país melhor. É
possível? Não pergunto se é possível um país melhor, mas se por acaso isto
seria possível dessa forma. Alguns acham que não. Próximos aos manifestantes,
agora dispersos pelo aparato policial, jovens com a cara coberta depredam lojas
e placas, voltam-se contra o ônibus que nos levaria de volta para casa – me
levaria de volta para o meu reduto dentro de toda essa podridão. E por que
deveria voltar a esconder-me? Por que não descer ali mesmo, juntar minhas forças
e minha revolta contra esse mesmo país que degenera a passos largos? Por que
não vandalizar? As pessoas ao me redor se desesperam com razão, há
ameaças de que o ônibus será quebrado, o motorista está desnorteado. Se conseguimos
escapar foi por sorte, talvez pela loucura de uma jovem moça que hasteava sua
bandeira, aquela mesma que nos estádios serve para que demonstremos nosso amor
pelo país. Saímos com vida. Percebi que a bandeira, a garantia de nossa
sobrevivência àquela noite, foi capaz de simbolizar muito mais que um amor à
nação em tempos de futebol. Suas cores evitaram as ações preto e branco, os
radicalismos de quem pensava menos que se revoltava – e contra o que, contra
quem? Dias depois estava ali, o país gritando a vitória na final do futebol, e
o grito das ruas aos poucos diminuía, era amortecido, estava cansado.
Voltava-se ao trabalho e à vida normal, esperando que algum dia o amor ao país
nos tempos de futebol se transformasse no amor ao país nos tempos de cólera,
dessa doença contagiosa que oprime e deprime ou que se rebela em violência, em
afronta física, esse branco ou preto que perde a própria visão das cores que
lhe formam, que lhe serviriam de incentivo para se transformar e transformar o
país – em quê? O que se quer? Vê-se mais televisão e navega-se mais pelas redes
do que se aprende a viver. Deixarei fechado meu computador e esquecida minha
TV, continuarei aqui neste meu reduto, neste esconderijo que chamo de lar, e
que me isola e me protege, creio, das barbáries do mundo lá fora, de um país
desunido e individualista. E não serei também eu tão egoísta? Reclusão não se
traduz, em linguagem social, omissão? Que cidadão pode continuar digno de sua
cidade quando dela se aparta por interesse próprio? Não! Preciso agir, dar
sentido à vida que esta nação me permite viver! Começarei transformando a mim
mesmo, lendo tudo o que eu puder sobre o humano e o divino, sobre a eternidade
e a história, sobretudo a nossa história, muito pouco conhecida como o é muito
pouco conhecida a história de cada um de nós. O dia em que eu conseguir contar
minha própria história e for capaz de inseri-la no tecido maior de minha
existência, nas redes inevitáveis que me ligam ao país, à humanidade e ao
eterno, no dia em que puder hastear sem necessidade de palavras a bandeira de
uma existência digna de viver, então nesse dia o país terá ganhado um seu
cidadão honrado, um homem deveras brasileiro, que ao invés de berrar nas ruas e
nos estádios, fará ecoar a única voz que não precisa do grito para se fazer
ouvir: a voz de uma alma frente a si mesma. Enquanto disso não for capaz, não
será nas passeatas ou no futebol que demonstrarei o meu amor ao país. Que se
gaste tempo e luz consigo mesmo – pois não se pode sonhar com uma nação
valorosa que tenha mais gado que homens.
Ou como mostrar a alma quando não se pode olhá-la no espelho, embora ela esteja ali, nos observando...
Por que estas pulsões ocêanicas?
Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?
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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.
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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.
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