Por que estas pulsões ocêanicas?

Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?

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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.

domingo, 14 de março de 2010

O dizer poético


O dito é a máxima expressão do que não se pode dizer. É a sua recusa em aceitar tal limite. É prever que nada pode nos impedir quando de fato a alma sente em si pulsar aquele fogo fátuo da vida eternizada em poucas, muito poucas palavras. Porque não se pode querer mais de tão pouco tempo. E mesmo assim insistimos. É claro, porque algo perdura ainda em meio a tudo isso. A chama parece não se afugentar tão displicentemente quanto muitos gostariam. A vida sempre encontra o seu meio. E para nós, nada substitui com maior vigor e pujança aquela sensação de eternidade na beleza – a poesia é somente e apenas o pulsar do tempo eternamente engrandecido por seres tão minúsculos e efêmeros.

E a beleza está aí. Neste sentimento consolador que move o poeta em harmonia com a canção mais insondável, escondida por trás do mundo, no mundo, aquela música que nos move e co-move a alma, os olhos, o pulso sanguíneo. E a sonoridade das palavras reunidas na poesia nos faz ouvir uma música diferente, diversa, quase mesmo inaudita se para tais palavras não estivermos munidos de bons ouvidos sensitivos. As imagens que afloram são cenas de um musical operístico, são fleches passados que a todo instante emergem e se entrelaçam no jogo imagético de ouvir a si mesmo e o mundo.

São nestes momentos sem dúvida que mais uma vez descobrimos não haver qualquer distinção entre homem e mundo. Pois a beleza está aí, sempre tão brilhantemente cantada pela mais vigorosa de todas as expressões artísticas de que o homem é capaz. São pelas palavras que o mundo torna-se aquele lunático espetáculo acima dos estábulos que tantas vezes ocorre aqui dentro de toda alma, por menos poética que ela seja.

sábado, 13 de março de 2010

O menino e a ave



Quando o menino avistou uma ave no chão, naquele momento em que as asas do animal estavam feridas e sangravam, ele sentiu seu corpo remoer-se por dentro numa mistura de asco e prazer. Não entendia, mas soube depois - porque o fato de não ter asas fez aquela pequena ave por um momento render-se aos seus pés, como se implorasse sua compaixão. O sofrimento do animal lhe partiu o peito em dor, as lágrimas desciam pelo rosto, mas ele permaneceu imóvel, sem esboçar reação. O doce da lágrima lhe tocou a boca, o peito disparava em ritmos intensos, incontroláveis. O sol se escondia aos poucos no horizonte. E ali ele permaneceu até que a lua lhe iluminasse o rosto, novamente revelando as lágrimas que não podia conter pela morte do animal que lhe pedira ajuda, mas que ele não pôde ajudar. Não entendia, mas soube depois - porque ele, embora sonhasse dia e noite com isso, não sabia voar.
E voltou para casa um pouco mais feliz.

sexta-feira, 12 de março de 2010


Quando todos os fatos da nossa vida tiverem passado, então poderemos dizer que ali jazíamos por inteiro. A vida só se realiza plenamente quando termina.

Lou Salomé



"só aquele que permanece inteiramente ele próprio pode, com o tempo, permanecer objeto do amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida, ser sentido como tal. Assim, nada há de mais inepto em amor do que se adaptar um ao outro, de se polir um contra o outro, e todo esse sistema interminável de concessões mútuas... e, quanto mais os seres chegam ao extremo do refinamento, tanto mais é funesto de se enxertar um sobre o outro, em nome do amor, de se transformar um em parasita do outro, quando cada um deles deve se enraizar robustamente em um solo particular, a fim de se tornar todo um mundo para o outro"



"Pois, nos seio mesmo da paixão, nunca se deve tratar de "conhecer perfeitamente o outro": por mais que progridam neste conhecimento, a paixão restabelece constantemente entre os dois este contato fecundo que não pode se comparar a nenhuma relação de simpatia e os coloca de novo em sua relação original: a violência do espanto que cada um deles produz sobre o outro e que põe limites a toda tentativa de apreender objetivamente este parceiro. É terrível de dizer, mas, no fundo, o amante não está querendo saber "quem é" em realidade seu parceiro. Estouvado em seu egoísmo, ele se contenta de saber que o outro lhe faz um bem incompreensível... os amantes permanecem um para o outro, em última análise, um mistério."


No dia em que eu estiver no meu leito de morte
Faísca que se apagou -,
Acaricia ainda uma vez meus cabelos
Com tua mão bem-amada
Antes que devolvam à terra
O que deve voltar à terra,
Pousa sobre minha boca que amaste
Ainda um beijo.
Mas não esqueças: no esquife estrangeiro
Eu só repouso em aparência
Porque em ti minha vida se refugiou
E agora sou toda tua

[Hino à morte]


By Lou Andreas-Salomé


Como se ela pudesse dizer tudo que precisa ser dito sobre a paixão...

Penso que sinto



Penso todas as noites nas noites
que não passei ao seu lado,
penso em todas as horas que vi
meu corpo ali, abandonado.


Penso: sem seu existir não existe
o eu querer ser amado,
penso que de pensar já basta
o estar aqui, envergonhado.


E então me calo, pois sinto -
sinto em amá-la sem pecado.