Por que estas pulsões ocêanicas?

Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?

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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Almas e corpos



Quando se olhou no espelho, por alguns instantes, percebeu trazer em si duas almas, talvez mesmo um protótipo grosseiro daquelas sobre as quais Machado já havia discursado, mas que se lhe pareciam muito mais reais que no conto, muito mais grosseiras, exigentes. Umas delas me olhava com curiosidade, como se percebesse que minha natureza não se manifestava à primeira vista. Permanecia oculta, uma outra espécie de alma, aquela que os olhos não veem, mas sente o coração, porque mais próxima de nossa convivência íntima, porque mais próxima do coração selvagem que trazemos encoberto pela fina camada de pele chamada sociedade. Duas almas, dois papéis, duas intenções. Não se poderia alegar outro motivo para a cisão, a crise que Paulo sentia em si mesmo, ao dizer “faço o que não quero, e o que quero não faço”: haverá alguma possibilidade de se confluir ambas em uma só carne, em um só propósito?
A alma externa é aquela que se mostra – as pessoas encaram, procuram entender os ditos e feitos expressivos, sempre na tentativa, porém, de alcançar o inexprimível, aquilo que se oculta sob o lençol, por baixo dos panos e das roupas íntimas que se usa, é bem verdade, para esconder a vergonha de nossa nudez. Uma nudez que já é outra alma, mais profunda e indefinível, mais submersa ao subsolo da subsistência, desconhecida de todos, mesmo daquele que a possui. A eterna luta contra os instintos, encampada por uma filosofia da racionalidade, revela já sua existência, os perigos que alimenta pela sua fome: os desejos, dirá a psicologia, inconscientes são indomáveis; são como dois corcéis a conduzir uma biga em direções opostas, conta-nos Platão, a ver no desejo pela beleza a raiz de todos os males, e sua única possibilidade de salvação. De muitos corpos belos pode-se chegar a ver a beleza em si mesma, imutável e divina – mas o trajeto não é garantido. Muito poucos se habilitam a esta inspiradora ascensão. A alma externa chama mais a atenção, o mundo social é mais imediato, a beleza que se vê é mais crível. Talvez tenhamos todos um pouco de Tomé em alguma das almas.
  Esta relação que trazemos em nossas almas, entre os instintos selvagens, por vezes desmedidos e desumanos pela beleza, e a possibilidade de por meio dela nos salvarmos, é por demais revelador. Se desejamos ardentemente algo nesta vida, este algo é a beleza – a beleza própria e de outros, da vida e do mundo, do corpo e da alma. Em nenhum outro fato se encerra a crise do espírito humano: deseja-se uma beleza que sempre se apresenta pelo mundo bastante superficial, e constatamos que deva ser ela, em sua divindade, inalcançável. O desejo sexual que joga o corpo contra si mesmo e contra outros corpos, atraído sobretudo pela voracidade que a alma interna lhe submete à beleza, ao encanto de uma rapariga em flor, nua sobre a cama, inteira e decididamente disposta não a uma ascensão ao inesgotável do prazer, mas ao declive a pouco e pouco nos meandros da ausência angustiosa de si mesmo, é a expressão mais fiel da inutilidade de uma busca pela beleza que se resuma aos muitos corpos belos – no fundo, uma hidra de sete cabeças que, como na mitologia, faz de uma cabeça cortada nascer outra.
No impulso sexual, ao que parece, ambas as almas entram em conflito para a mútua perdição. A alma externa, nutrida de boas imagens e belos corpos à vista, cede ao íntimo da outra alma os influxos que lhe induzem a perder-se em meio à multiplicidade cinematográfica de um bacanal à la Calígula, em que a variedade de sensações resume uma mais imediata conquista daquela beleza desejada. Mas por querer a alma interna justamente uma beleza única, capaz de satisfação plena, não superficial ou transitória, a crise entre a fome interna pelo belo e a sua realização sexual em diferentes corpos subjuga ao prazer carnal, carnaval, aquele outro prazer, mais profundo e tão demasiadamente humano quanto sobre-humano, de se enroscar com a beleza em si mesma, divinal. Frequentar o jardim das delícias do mundo epicurista é, no fim das contas, padecer no paraíso.
Como então chegar a reunir as duas almas em uma – se isto é possível nesta vida ou somente naquela outra, que segue a morte carnal? Ele no fundo não sabia responder, tamanha dissensão que sentia em si mesmo, ao olhar-se no espelho, já agora totalmente nu. A voz da bela moça sobre a cama lhe oferecia uma noite de prazer. Sua vontade de possuí-la era já incontrolável quando se deu conta de repente da reflexão aqui narrada, das duas almas que trazia em si, do desconforto em vê-las conflitantes. O pior de tudo, porém, era ainda não ter uma resposta segura, que lhe pudesse garantir a união disto que percebia desconcertado. Mas se as almas não condiziam em suas promessas, o corpo de certa forma era único, e apelava tão-somente para a realização de sua vontade mais imediata.
– Não será, talvez, esta distinção mero produto deste corpo aqui?
A beleza, em si mesma única, não poderia ser muito diferente da variedade que se dá a olhos vistos. A visão nos constrange à perdição, tanto quanto nos revela o caminho que conduz ao paraíso. Entregar-se ao prazer é provar, por pouco que seja, o alimento sagrado da alma, que não é dado ao paladar sentir, mas ao coração. Não somos duas almas: somos um corpo que carrega em seu mais íntimo a semente do divino.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

As loucuras da vovó maquiavélica



O Lula enlouqueceu! A constatação é de Arnaldo Jabour, mas bem poderia ser de qualquer espectador das últimas novidades na política brasileira. É bastante conhecido o provérbio que diz “de médico e louco, todo mundo tem um pouco”, mas a saúde debilitada do senhor excelentíssimo ex-presidente da República parece ter afetado inclusive seus neurônios. Não, isto não é ironia – a questão é que boa parte do que acontece hoje no mundo, inclusive e acima de tudo no Brasil, tem se mostrado, quando dito, constantemente acrescido de um sentimento do ridículo, próprio daquelas épocas da história humana em que os fatos não condizem mais com aquilo que se esperaria deles: antes, contradizem de tal forma nossas expectativas que só podemos, em certa medida, desacreditá-los, e no fim, devido à falta de lógica dos agentes envolvidos na situação, rir do grotesco escancarado.
É bem verdade que se pode dar boas gargalhadas ouvindo os últimos noticiários – em que se apregoa cuidados com o planeta, beirando o catastrófico, apenas para provocar à ação quem menos degrada o meio ambiente, ou seja, a sociedade civil; ou então no vislumbre, diria mesmo horripilante, de uma CPI que se constrange a si mesma toda vez que intenta investigar mais a fundo o lamaçal de corrupção que desce “cachoeira abaixo”. O mais surpreendente, no entanto, é ver o senhor Lula tecer suas redes de influência corruptora de modo tão explícito que o riso latente nos lábios do povo só pode significar uma coisa: estamos diante de uma dominação descarada do aparelho estatal por parte do PT, que não medirá esforços, nas palavras do próprio Lula, para se manter no poder, custe o que custar.
Mas seria mesmo esse o significado do riso que esboçamos ao ver o ex-presidente ao lado de Maluf, aliando-se aos mais podres da política para satisfazer sua ambição à la Maquiavel? É provável que o povo nem chegue realmente a se dar conta do que vê, e ria de tudo isso apenas porque constate aquilo que já sabia faz tempo: que só a corrupção prevalece nestas terras. Contudo, mesmo inconscientemente, o espírito tupiniquim pode diagnosticar a loucura do seu semelhante medindo-a pela sua própria: nossa falta de preocupação com a política, com o que se faz dela por aqui, espelha o sorriso que damos ao ver uma cena como esta da foto. Rimos da loucura de nossa política pela nossa própria loucura em não nos preocuparmos com a política! E o que nos sobra? – Bem, temos praias, cerveja, carnaval. E quando tudo parece meio doido lá fora, o médico que há em nós foge em direção à loucura de nos deixar levar pela vida, de churrasco em churrasco, ao som dos pagodes de quintal ou do “batidão” que, muito sagazmente, denuncia: a vovó que ficou maluca incorporou no líder do PT. Quando o senhor Lula aparecer de peruca, ninguém mais terá dúvidas: rir é o melhor remédio.