Por que estas pulsões ocêanicas?

Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?

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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.

domingo, 9 de novembro de 2014

Dostoiévski - Memórias de Subsolo


O livro de Dostoiévski é uma autópsia da alma moralmente decaída, do subsolo que quase sempre escondemos da vista dos demais pelos inúmeros papéis que representamos, pela aparência das relações e dos hábitos. É um abrir-se às angústias que se escondem na maldade que trazemos na mente, no esforço desmedido que fazemos para parecer bons, quando na verdade só o que temos é dor, mágoa, mesquinhez, vilania. Mas algo temos a mais. Nem tudo é só mágoa ou mesquinhez. É possível que haja alguma salvação ao homem que fale e que viva do subsolo. Por certo deve ser preciso levar o olhar com coragem e diligência ao mais íntimo de nossa miséria, com a esperança de que então se dê, com coração, o alívio de tão grande baixeza: por uma elevação, por misericórdia. 
O livro é um castigo correcional. É a forma que um homem, amargurado pelo seu temperamento histérico, encontrou para se vingar de si mesmo. Isso porque nada é pior ao histérico do que o não haver quem lhe ouçam as agruras. Na ausência de alguém a ouvir-lhe a miséria, porque todos já se afastaram, porque ele mesmo já as expulsou com sua mesquinhez e ignorância, com sua vilania, há que se voltar para si mesmo, para recontar-lhe as memórias. E para isso é preciso coragem, no dizer de si para si mesmo o quanto sua vida fracassou. Mais coragem ainda está em escrevê-las, em de algum modo torná-las acessível a qualquer um, desconhecidos ou não. "O papel tem algo que intimida". A coragem de se pôr a escrito é a maior das virtudes do poeta. Aos quarenta anos, o autor das memórias é o narrador de si mesmo para quem quiser vê-lo e em seguida repudiá-lo ou admirá-lo. Sua escrita é a prova do castigo pela vida não vivida com virtude, a prova de que ao menos lhe sobrou a virtude de se expor, de se mostrar, de se oferecer ao julgamento dos olhares alheios - e talvez o único olhar que lhe reste seja o de Deus. 
E as memórias a princípio são uma reflexão, sobre sua natureza miserável e tacanha, sobre a vil e inócua sensação de que no fundo cada um esconde suas misérias e fracassos como de vergonha em ser assim, demasiado humano. É preciso refletir sobre a causa de tamanha ignomínia humana, de por que tanta maldade ou para que tanto pavor. O fosso se abre e de lá sai o mal cheiro e a imunda aura de nobreza sustentada por nossos hábitos, pelo status e pelo silêncio, Pois deixe a alma falar! E já o que se houve é a sinceridade, de alguém que não pode se esconder de si mesmo, que não pode fugir de sua condição reflexa. Ao menos o homem dado aos estudos não o pode. Talvez a boa ventura de um homem prático, diz-nos, esteja exatamente na ausência plena e um tanto terrível de si: a ele não se impõe o reflexo de sua imagem, a visão de sua própria entranha às claras, sem reservas ou esconderijos. Ao homem prático não é dado refletir. Eis a nossa vilania, nós homens de estudo! Estamos por demais visíveis a nós mesmos! 
Se há um reflexo, no entanto, permissível em sua crueldade exatamente porque evidente e claro, este diz respeito ao contraste entre nós, homens de estudo, e os homens práticos. Eles são por demais ausentes de reflexão, e por isso mesmo estão privados da angústia que nos acomete em tecer as maiores argumentações e demonstrações para provarmos o óbvio: que não prestamos! O homem prático não está posto diante de sua miséria, e por isso não deseja fugir-lhe por meio dos argumentos mais elaborados e mesquinhos. Ele vive a "vida viva", não a literária, a filosófica, não a forjada de sonhos e reflexos. Sua vida não é um poço, mas uma superfície. É com homens assim que a segunda parte de suas memórias, quer dizer, aquela parte propriamente memorialista e não reflexiva, aquela parte por assim dizer prática e não reflexa, traz seu embate, a fim de revelar com ainda mais evidência e como que por contraste o seu subsolo.  
A aflição em desejar e repudiar o oficial que lhe despreza, o encontro com amigos de infância em um jantar de alta classe, que lhe faz descer ao abismo da repulsa de si em se mostrar tão indigno de estar ali que ao fim da noite, já bêbado e desonrado, se vê na cama ao lado de uma prostituta em um bordel de quinta, a quem paga o mais belo dos sermões mas de quem não se faz digno de satisfazer o amor: o fim da segunda parte é a evidência prática de sua miséria refletida. É o passado que fundamenta e justifica o presente. Somos a história de nossos atos e escolhas. Não se pode fugir do passado sem que se fuja de si ao mesmo tempo. A vida dos homens práticos, a "vida viva" e não a dos livros, é um talento que não lhe foi dado. Sua virtude não está em viver a melhor vida, mas em poder refletir que vida poderia ser essa.  
Aos quarenta anos, o autor tece sua própria condenação aos olhos do leitor. E é preciso coragem para fazê-lo. Talvez trate-se aqui do próprio Dostoiévski. Talvez sua novela lhe tenha sido mesmo o próprio castigo correcional. De todo modo, quer seja ao autor ou a Dostoiévski ou a nós, leitores, está dada ao mesmo tempo a redenção por misericórdia: se pôr a escrito seu subsolo é torná-lo de algum modo solene, porque intimidante e dado ao julgamento dos olhares diversos, a redenção transparece ao sabor da solidão, quando ao final da autópsia não se ouve voz alguma senão a da própria consciência que nos aponta para a verdade. Verdade não ignóbil, por certo, pois não há como dela escapar. O homem reflexo, do subsolo, o paradoxalista, não deseja continuar a falar do subsolo. Suas memórias continuarão, certamente, mas regidas agora pela luz que fez brilhar alguma dignidade em si: 
"E, no que se refere a mim, apenas levei ao extremo, em minha vida, aquilo que não ousastes levar até a metade sequer, e ainda tomastes a vossa covardia por sensatez, e assim vos consolastes, enganando-vos a vós mesmos. De modo que eu talvez esteja ainda mais "vivo" que vós. Olhai melhor!"