Por que estas pulsões ocêanicas?

Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?

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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.

domingo, 25 de janeiro de 2015

Experiência de fim de tarde


O fim de semana me marcou pelos filmes, Magia ao luar e Colcha de Retalhos. O primeiro, mais recente, é de 2014; o segundo, de 1995. Aquele, do grande e aclamado cineasta Wood Allen; este, de uma pouco conhecida diretora de Hollywood. E se ambos me foram bastante enfáticos na força que os diálogos têm para compor um drama, tecido em intrigas e histórias, aquilo que me pareceram trazer em comum, ou seja, a riqueza da experiência humana com a beleza da vida, é em cada um significativamente diversa: enquanto no último ela é a luz que ilumina as vidas e o tom com que nos constrange a admirá-las, no primeiro é só e tão-somente apreciado como farsa.

A magia de Allen, seus diálogos curtos, prospectivos e abusivamente cultos, são a tônica de seus enredos, aquilo que o tornou conhecido e que lhe confere, com certa autenticidade, a genialidade de sua direção. Mas temo que em Magia ao luar haja apenas isso: uma grosseira e talvez mesmo despropositada tentativa de fazer seu talento dizer mais, quando não há mais o que dizer. Retomando um velho hábito de intelectuais decadentes, a colorirem a si mesmos como uma força de novidade contra a velha e desde sempre caduca maneira de a partir dos templos pensarmos a vida, o filme de Allen é uma espécie de manifesto da razão depois do seu colapso; e o que poderia ser uma reviravolta daquelas tramas pseudo-intelectuais, em que se apregoam, com invejável fé religiosa, os preceitos ateístas autointitulados o cume da evolução humana, no fundo apenas um certo tipo hoje banal de pré-conceito, acaba tornando-se mais uma.

Mas Allen é irônico por essência, e sua Magia talvez deva ser entendida como tiro de misericórdia contra tamanha ignorância sapiencial, algo como estar de saco cheio de ouvir tanta gente arrotar conhecimento depois de comer apenas esterco e estrume. A impressão que se chega a ter, porém, é que tudo não passa de uma ilusão: a magia que encanta a vida do homem comum, a razão que persuade o homem culto de sua superioridade abjeta. O escambo de uma pela outra não é senão trocar seis por meia-dúzia. Com a visível diferença de que, se não se pode fugir da ilusão, melhor é que ela seja tão mágica quanto possível. E a decisão do mágico racional em se entregar à magia do amor pela bela impostora é o truque de Allen para nos fazer ver que na vida só se tem mesmo, custe o que custar, um encontro final com um grande truque de mágica, e nada além disso.

Colcha de retalhos caminha, do mesmo modo, na tentativa de desenrolar o fio da ilusão do amor a partir dos retalhos de histórias que as mulheres da trama vão tecendo enquanto ajuntam suas alegrias e mágoas para a colcha final. É uma trama absolutamente sensível e profunda, como é a vida, sempre perdida em retalhos soltos e esquecidos se não fosse a habilidade do artista em tecê-los para recobrir nossa imaginação. Todas as belas histórias têm em comum o amor, mas trazem de suas narradoras a delicadeza de percebê-lo como não sendo marcado senão por uma força misteriosa, que leva à insanidade quem dele sofre. As dificuldades do casamento e da vida a dois são refletidas na colcha a ser construída a partir da imagem que cada uma forjou para si mesma, do que lhe foi possível, sobre a magia ilusória e ao mesmo tempo irresistível das diversas formas de amar.

Diferente do filme de Allen, porém, a crueza das frustrações e dos desenganos do amor e da vida não é encarada aqui como uma ilusão: esta é a vida, e não há como escapar do influxo de ser ao mesmo tempo tomado pela paixão avassaladora e pela frieza do pensamento racional, como não há escape entre o nascer e o pôr do sol. O murchar inevitável de uma flor, retida em seu lar no jardim ou esbelta em um vaso de uma casa de mulher, não esconde, de modo algum, a beleza que exala enquanto desabrocha para a vida. A transitoriedade é um fardo à razão, mas é exatamente por isso que devemos, a partir dela, conservar a riqueza de vida que se faz digna de ser vivida pela recordação dos momentos que são como o ar que respiramos. Se pelo filme de Allen fico com a impressão de que tudo não passa de um truque, a partir de Colcha de retalhos sou levado a tecer um outro olhar, direcionado não mais para o compromisso ortodoxo de ser o devoto da razão científica, mas para a simplicidade do frescor que as agruras e maledicências pelas quais passamos jamais apagam a beleza que há em poder admirá-las como a maior das dádivas: a de poder estar vivo e amar.