Por que estas pulsões ocêanicas?

Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?

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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

O duplo - Dostoiévski


Todos temos um duplo de nós mesmos. O de Dostoiévski, ou antes, o do senhor Golyádkin, nasce a partir de uma doença, de uma crise: a solidão que o destina a viver enclausurado em si provoca o nascimento de sua outra parte. Essa outra parte é uma fuga, pode-se pensar, uma forma de escapar ao terrível mal moderno da vida isolada do mundo, sem sentido e sem saúde. Quando o senhor Golyádkin percebe despontar em si a necessidade em quebrar essa barreira, receitado que foi por seu médico a ter mais vida social, faz-se por surgir num ambiente a que não pertencia por classe, nem por cultura, decidido em esboçar sua entrada triunfal na sociedade de que sempre esteve à parte, quando da festa de alta classe que seu patrão e benfeitor oferecera em honra da filha para amigos e convidados. O senhor Golyádkin, que não era nem amigo nem convidado, mas como assim não mereceria estar ali, por que razão não o deveria, avança pelos fundos da casa e se impõe como se fosse também um deles até ser vergonhosamente retirado à força quando decide por bem retirar para dançar a filha do benfeitor, quase lhe denunciando um pedido matrimonial, por certo exalando sua audácia sem vergonha, sua intimorata loucura de solitário. Em fuga do recinto vergonhoso de um aparente remédio para sua doença, nesse momento sua personalidade adoece. Ter-se como que a um outro de si, um duplo até agora só suspeitado ao espelho ou nos sonhos, é o que Golyádkin cria, para sua satisfação inicial, para seu sofrimento em seguida. Pois o duplo é criação que degenera, definha, divide. Não se pode desejar a sanidade quando o seu um outro anda por aí e age como se fosse um gêmeo de sua existência. O nosso duplo é saudável até tornar-se um outro por aí.

De um outro de si entendemos, nós os homens solitários. A necessidade do desdobramento é por demais emergencial, sufocante. Tem-se de viver em sociedade, corresponder a anseios e honras, amores e fracassos. Tem-se de ser outro. Mas o outro pouco percebe o desdobramento, pouco se vê que o ser social é só uma parte de nós. Quando estamos na festa, pouca festa há senão a que deseja aventurar-se novamente nas cadeias de si mesmo, voltar ao seu reduto isolado, ao nosso mundo. Nessa aventura em sociedade, é mais forte o desejo de se deixar mostrar sem ser visto, de levar os olhos alheios a perscrutarem o valor que escondemos, só mesmo dado a poucos, bem poucos, com os quais voltamos para casa e dividimos a vida. Aos demais, a impressão é de outra imagem, de um outro eu. Não é uma escolha, é necessidade. Golyádkin soube bem que apenas no ambiente fraterno de seu próprio lar o outro poderia ser boa companhia. No mundo externo, sua outra parte torna-se um oposto, um arqui-inimigo, um alterego antagonista, adversário, o outro se torna a pior imagem de si. Ou talvez a melhor, a depender de quem domina o lar. Mas por fim é do lar que o senhor Golyádkin é retirado, do conforto paupérrimo a que se via entregue, pela ambição de uma vida normal, como todos os demais. Mas os demais não são sua existência, nem sua saúde. Os outros são sua doença. A cura imaginada, a entrega plena e destemida ao vínculo sociável fez-lhe irremediavelmente louco. Retirado de seu lar, constantemente alucinado por aquela figura arredia de sua contraparte, acredita lhe caber o fim almejado: o livramento da bela filha do benfeitor, livrá-la de um outro que ele imagina indesejável. Era tudo o que desejaria. Mas não se pode ser benfeitor quando não se tem poder para isso. Golyádkin é gente pobre, indigno da alta classe de onde procede sua princesa. Investindo na transição de classe à força, é forçado a seguir o médico, dessa vez não mais para receitá-lo à convivência, mas para trancafiá-lo de uma vez em um antro de solidão. Sua audácia é loucura, sua imagem é doentia, seu desdobramento é declínio. Golyádkin é retirado de seu lar, de sua normalidade, de sua mínima possibilidade de cura. A sociedade não se compraz no desdobramento, embora ela seja seu deflagrador. O outro de Golyádkin, ou de Dostoiévski, é um símbolo da loucura da vida coletiva. O homem, antes de ser social, é seu mesmo. O nosso duplo é loucura até tornar-se um outro privado da vida em comum.