Quando se olhou no espelho, por alguns
instantes, percebeu trazer em si duas almas, talvez mesmo um protótipo
grosseiro daquelas sobre as quais Machado já havia discursado, mas que se lhe
pareciam muito mais reais que no conto, muito mais grosseiras, exigentes. Umas
delas me olhava com curiosidade, como se percebesse que minha natureza não se
manifestava à primeira vista. Permanecia oculta, uma outra espécie de alma,
aquela que os olhos não veem, mas sente o coração, porque mais próxima de nossa
convivência íntima, porque mais próxima do coração selvagem que trazemos
encoberto pela fina camada de pele chamada sociedade. Duas almas, dois papéis,
duas intenções. Não se poderia alegar outro motivo para a cisão, a crise
que Paulo sentia em si mesmo, ao dizer “faço o que não quero, e o que quero não
faço”: haverá alguma possibilidade de se confluir ambas em uma só carne, em um
só propósito?
A alma externa é aquela que se mostra – as
pessoas encaram, procuram entender os ditos e feitos expressivos, sempre na
tentativa, porém, de alcançar o inexprimível, aquilo que se oculta sob o
lençol, por baixo dos panos e das roupas íntimas que se usa, é bem verdade,
para esconder a vergonha de nossa nudez. Uma nudez que já é outra alma, mais
profunda e indefinível, mais submersa ao subsolo da subsistência, desconhecida
de todos, mesmo daquele que a possui. A eterna luta contra os instintos,
encampada por uma filosofia da racionalidade, revela já sua existência, os
perigos que alimenta pela sua fome: os desejos, dirá a psicologia,
inconscientes são indomáveis; são como dois corcéis a conduzir uma biga em
direções opostas, conta-nos Platão, a ver no desejo pela beleza a raiz de todos
os males, e sua única possibilidade de salvação. De muitos corpos belos pode-se
chegar a ver a beleza em si mesma, imutável e divina – mas o trajeto não é
garantido. Muito poucos se habilitam a esta inspiradora ascensão. A alma
externa chama mais a atenção, o mundo social é mais imediato, a beleza que se
vê é mais crível. Talvez tenhamos todos um pouco de Tomé em alguma das almas.
Esta relação que trazemos em nossas almas,
entre os instintos selvagens, por vezes desmedidos e desumanos pela beleza, e a
possibilidade de por meio dela nos salvarmos, é por demais revelador. Se
desejamos ardentemente algo nesta vida, este algo é a beleza – a beleza própria
e de outros, da vida e do mundo, do corpo e da alma. Em nenhum outro fato se
encerra a crise do espírito humano: deseja-se uma beleza que sempre se
apresenta pelo mundo bastante superficial, e constatamos que deva ser ela, em
sua divindade, inalcançável. O desejo sexual que joga o corpo contra si mesmo e
contra outros corpos, atraído sobretudo pela voracidade que a alma interna lhe
submete à beleza, ao encanto de uma rapariga em flor, nua sobre a cama, inteira
e decididamente disposta não a uma ascensão ao inesgotável do prazer, mas ao
declive a pouco e pouco nos meandros da ausência angustiosa de si mesmo, é a
expressão mais fiel da inutilidade de uma busca pela beleza que se resuma aos
muitos corpos belos – no fundo, uma hidra de sete cabeças que, como na
mitologia, faz de uma cabeça cortada nascer outra.
No impulso sexual, ao que parece, ambas as
almas entram em conflito para a mútua perdição. A alma externa, nutrida de boas
imagens e belos corpos à vista, cede ao íntimo da outra alma os influxos que lhe
induzem a perder-se em meio à multiplicidade cinematográfica de um bacanal à la
Calígula, em que a variedade de sensações resume uma mais imediata conquista daquela
beleza desejada. Mas por querer a alma interna justamente uma beleza única,
capaz de satisfação plena, não superficial ou transitória, a crise entre a fome
interna pelo belo e a sua realização sexual em diferentes corpos subjuga ao
prazer carnal, carnaval, aquele outro prazer, mais profundo e tão
demasiadamente humano quanto sobre-humano, de se enroscar com a beleza em si
mesma, divinal. Frequentar o jardim das delícias do mundo epicurista é, no fim
das contas, padecer no paraíso.
Como então chegar a reunir as duas almas
em uma – se isto é possível nesta vida ou somente naquela outra, que segue a
morte carnal? Ele no fundo não sabia responder, tamanha dissensão que sentia em
si mesmo, ao olhar-se no espelho, já agora totalmente nu. A voz da bela moça
sobre a cama lhe oferecia uma noite de prazer. Sua vontade de possuí-la era já
incontrolável quando se deu conta de repente da reflexão aqui narrada, das duas
almas que trazia em si, do desconforto em vê-las conflitantes. O pior de tudo,
porém, era ainda não ter uma resposta segura, que lhe pudesse garantir a união
disto que percebia desconcertado. Mas se as almas não condiziam em suas
promessas, o corpo de certa forma era único, e apelava tão-somente para a
realização de sua vontade mais imediata.
– Não será, talvez, esta distinção mero produto
deste corpo aqui?
A beleza, em si mesma única, não poderia
ser muito diferente da variedade que se dá a olhos vistos. A visão nos
constrange à perdição, tanto quanto nos revela o caminho que conduz ao paraíso.
Entregar-se ao prazer é provar, por pouco que seja, o alimento sagrado da alma,
que não é dado ao paladar sentir, mas ao coração. Não somos duas almas: somos
um corpo que carrega em seu mais íntimo a semente do divino.