Às vezes soa esquisito ou mesmo ingrato, confesso, ter de apontar tão-somente os defeitos da "pátria amada" que nos criou e nos deixa ainda viver. Confesso que tento aprimorar os bons olhos de minha alma para não ver a queda vertiginosa que a cultura brasileira vem sofrendo nos últimos anos, sem uma música ou uma literatura que prestem, sem qualquer indício de uma casta pensante lúcida e uma plêiade de artistas bem dotados quer do mais vasto trato com o popular, quer do mais elevado diálogo com a transcendência. Todo aquele que tem um mínimo conhecimento das sociedades humanas sabe que nenhuma cultura pode chegar a sobreviver sem tais indivíduos, e não seria de todo impróprio dizer que em um futuro próximo, a continuar o atual estado de coisas, a vida brasileira se tornará tão infrutífera como são os desertos. E a imagem talvez renda seus frutos: pois se nos desertos a fauna e flora precisam se adaptar a fim de poderem suportar os escassos recursos, também nós por aqui precisamos nos adaptar, se queremos preservar alguma sanidade. Em um lugar onde falta produtividade cultural, abundam as salivas animalescas dos famintos sem espírito.
A
falta de vida cultural não é tão facilmente diagnosticada, sobretudo
por quem desconheça o que seja uma vida cultural. No caso do Brasil,
contudo, um estudante atento rapidamente vai perceber pelas aulas de
história e de literatura que a cultura brasileira durante os anos 20 até
os anos 60 e 70 foi um oceano de grandes mentes, de discussões
políticas e artísticas que vieram a formar gerações, e que hoje não
passam de um capítulo nos livros didáticos, sem que saibamos muito bem
como aquilo poderia ter acontecido e como é que fazemos acontecer de
novo. Muitos duvidariam da necessidade de uma tal efervescência cultural
vir a se realizar em nossos dias. O deserto produz miragens. É por isso
que enxergamos em Paulo Coelho ou em Veríssimo os maiores
representantes das letras tupiniquins, sem nos esquecermos de Caetano e
de Chico, elevados ao posto de grandes poetas por quem nunca parou para
ler grande poesia. Na falta de água em meio à seca, qualquer líquido
pode satisfazer a sede.
O
reflexo dessas miragens luxuriantes, e demasiadamente compensadoras, se
projeta no meio social quando tivermos que lidar com as situações do
nosso dia a dia. Como ao ler pesquisas, por exemplo, sem que saibamos
avaliar o que dizem realmente os dados, isso se eles não vierem
falseados com algum interesse obscuro, como foram os últimos
dados do IPEA. O desagrado com o resultado de pesquisas do IBGE tem
feito o governo preterir verbas para a instituição, talvez para mostrar
ao IBGE que é o modo à la IPEA que mais lhe interessa agora. Isso porque
é preciso falsear os dados, superfaturar obras para a Copa e promover
um rombo na Petrobrás muito maior que qualquer mensalão poderia cobrir.
Deve-se mesmo esvaziar os cofres públicos e subjugar as forças policiais
e a suprema corte, promovendo a mais generalizada corrupção que já se
viu por aqui. Afinal, um povo com fome e sede não encontra forças para
lutar e, em meio ao deserto do real em que estamos nos encerrando, o
oásis que a terra brasileira produz vai parar nos bolsos da politicalha.
Nada
poderia retratar em alto e bom som a miséria desse país que dois fatos
recentes bastante simbólicos. O primeiro deles veio devido aos dados
falseados da pesquisa do IPEA, quando ativistas decidiram lutar contra a
cultura e a opressão machistas por meio de uma campanha "Não mereço ser estuprada".
Pois se a campanha tinha o enfoque de não culpar as mulheres pela
violência dos homens, há aqui um problema: se as ativistas defendiam não
merecer serem estupradas, deixava-se subentendido que as vítimas de
estupro de algum modo mereceriam! Mas as incoerências não param aí. O
segundo caso é ainda mais simbólico: o tal "professor" de filosofia que
intitulou a Popozuda como "grande pensadora contemporânea" não
mostrou a mínima compreensão de que o trecho escolhido do funk era ele
mesmo uma prova da falta de pensamento, ainda que fosse pequeno. Alguém
que não entenda que "tiro, porrada e bomba" nada tem de
pensamento nem deveria se aproximar da filosofia... Mas o descaso e a
inércia por aqui são tão grandes que não posso me arrepender de trazer de
novo nossos defeitos ao invés das grandes coisas. Porque enquanto se
assiste à TV e se espera ansioso pelo hexa da seleção, o que tem
acontecido de realmente grandioso está a nos prejudicar. Ainda que não possamos enxergar o país do
futuro nesse deserto brasileiro, a terra prometida tem sido uma miragem, porque dela somos
privados, como os judeus no Egito, por nossa própria ignorância.