Por que estas pulsões ocêanicas?

Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?

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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

A verdade de Helena


A força do lógos que a tudo domina
mina inclusive a responsabilidade
da alma, que entretida com a fugacidade
se esconde da verdade e a elimina

no seu lugar de residência, habitação
ordenada pelo amor que lhe devota:
por certo, o peso em decidir embota

aquela natureza desregrada
não por outros, mas por si enganada -
de certa forma, Górgias tem razão.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

The Walking Dead




Se entendemos a arte como fundamentalmente uma expressão de impressões, o artista por definição está impossibilitado de governar em conjunto todos os meandros e as sutilezas de sua criação: embora necessariamente dotado de uma consciência apurada e mesmo crítica acerca de sua expressividade poética, um autor não poderia ter domínio sobre todas aquelas impressões que deseja exprimir, pelo simples fato de lhe serem muitas ainda inconscientes. Diante disso, o papel do espectador torna-se lapidar, à medida que seu olhar cuidadoso fará com que naturalmente criem relevo os indícios de certos sentimentos e pensamentos que o artista expressou sem saber, a fim de conjugá-los às impressões conscientemente expressas em um todo harmônico e por vezes estimulante. A tarefa do crítico de arte é exatamente a de um espectador cuidadoso.

Em The Walking Dead, concluo sem dificuldades, o que se chegou a expressar encontra-se na criação de uma alegoria acerca da condição propriamente humana, no que diz respeito ao seu exercício de liberdade e de escolha. A série em questão é uma metáfora ressonante de quais são as variáveis e as implicações envolvidas no processo humano de tomar uma decisão, quer seja no âmbito individual quer seja na esfera social. Aliás, todas as escolhas não são senão pretensamente individuais: vivemos e devemos viver em sociedade, motivo pelo qual toda decisão é sempre uma escolha coletiva. E a atmosfera em que se desenvolve a história não poderia ser mais propícia.

A queda do mundo tal como se conhece hoje: eis a ambientação a que somos levados. Um vírus misterioso infectou a vida humana no Planeta, de tal modo que as pessoas normais, as poucas que restaram, viverão o resto dos seus dias na tentativa de escaparem ao fim que alcançou a grande parcela da população. Tornar-se um zumbi, um morto-vivo, um ser sem qualquer traço de humanidade – escapar de transformar-se em um deles é o sentido de vida dos que restaram ainda conscientes. Pode parecer ao espectador que a série, à primeira vista, seja mesmo uma metáfora sobre a luta pela sobrevivência humana, pelos modos que temos e podemos ter de tentar nos preparar para o pior. Mas essa não é senão uma leitura que nada na superfície. A imagem criada por The Walking Dead é, antes, a de uma simbologia cuja significação vai bem além de uma simples luta pela sobrevivência. O que vemos, de fato, é a representação do conflito essencialmente humano entre agir segundo sua animalidade, seu instinto de sobrevivência, e agir segundo sua humanidade, seu apelo à bondade e à virtude. O que interessa na série encontra-se no elemento propriamente humano da liberdade moral – e ousaria dizer que nesse elemento está toda sua força cultural, em detrimento das mortes e cenas grotescas de terror sanguinário que incomodam aos olhos mais sensíveis.

Vejamos. Depende da capacidade moral qualquer escolha que tomemos. E a capacidade de decisão não pode existir isenta de consciência – antes a exige. É por essa razão que os ditos zumbis não podem escolher: piores que animais, o corpo envenenado pelo vírus só encontra satisfação com a carne alheia. Não pensam nem guardam qualquer traço de memória, pois o cérebro tem unicamente estimulada a sua parte apetitosa. Estímulo que não cessa até que sejam feridas de morte as sinapses restantes. São uma ameaça quando surpreendem à espreita ou quando atacam em bando. Isolados e à luz do dia, parecem mesmo ridículos. A força da metáfora aqui é flagrante: os mortos-vivos dos dias atuais não pensam nem usam da consciência para fazer suas escolhas, mas vivem a vida em função de seus apetites. Em seres assim, fala mais alto em todo caso as vontades imperativas do baixo ventre. Não deixa de ser uma ameaça sua reunião sob uma mesma causa ou bandeira.

Os humanos sobreviventes, lançados à própria sorte em um mundo sem leis ou governos ou qualquer outra garantia política, econômica e espiritual, veem-se na condição de seres por assim dizer intermediários entre os caminhantes mortos e os traços remanescentes de sua remota humanidade. Os sobreviventes são os homens normais – e a palavra normal aqui é deveras sugestiva: reverbera os impactos biológicos e sociais dessa condição de ser humano a que nos vemos constantemente lançados. Como seres intermediários entre o caos e a consciência, entre a queda da civilização e a recusa pela barbárie, o homem é posto frente ao apelo que jamais lhe deveria escapar. Alguns não tardarão em abrir mão daquelas vagas lembranças de um passado condenado face a um presente assustador que lhes exigirá as decisões mais acertadas tendo em vista à sobrevivência, quer individual quer coletiva. Não cabe procurar fazer o certo ou o errado, diz uma das personagens, mas a única coisa a ser feita: sobreviver. A outros, no entanto, a desordem do mundo, a queda das instituições e dos pilares da civilização humana não serão motivação suficiente para chegar a entender-se a si mesmo como incapaz de realizar o bem e a justiça. Os valores que nos forjaram a humanidade, alcançados em milênios de travessia pelo mundo, não podem ser jogados fora em decorrência de um fim do mundo provocado por nós mesmos. Somos em tudo a doença e a cura: em nós está o fracasso e a vitória, o bem e o mal. O que não se pode abrir mão é de escolher a qual senhor servir.

A dimensão da escolha, nas quatro temporadas da série, encontra uma sua justificação em nada ingênua ou despropositada. Pois se escolher é optar entre o bem e o mal, entre fazer o que é certo ou humano e aquilo que diz respeito ao momento oportuno da sobrevivência – em outras palavras, a escolha entre o que diz a consciência em razão do bem e da verdade e o que diz o corpo e o instinto de autopreservação, The Walking Dead propõe, pelo ambiente hostil de uma vida em tudo devotada à sobrevivência em meio ao caos, que a dimensão de humanidade em nós pode e deve ser mantida e alimentada. Isso porque a autopreservação, como um sentido de vida, é ilusória: nada é mais incerto que a tentativa de fugir da morte. Mas se as decisões em vista da preservação de si mesmo não são senão paliativas e fadadas ao momento em que o destino chegará a subvertê-la, a decisão em vista do bem e da honra pela verdade será sempre uma possibilidade concreta e digna de uma vida vivida em toda a sua humanidade. Viver sem essa dimensão humana da escolha livre e consciente em fazer o bem e o justo, ainda que isso lhe traga a morte, face ao instinto animal em se preservar não se sabe até quando nem para que, é não chegar a viver uma vida digna de ser vivida. Muitos homens aparentemente normais não estão senão infectados pelo vírus da impiedade e da imoralidade, que lhes apaga qualquer traço de humanidade porque lhes submete a apetites e não à inteligência. A lição em The Walking Dead, creio estar certo, não pode ter sido mais retumbante – ainda que tenha sido expressão de impressões inconscientes de seus criadores.