Por que estas pulsões ocêanicas?

Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?

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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Hesse - Narciso e Goldmund


Ler Hesse é uma experiência humana. É mergulhar na humanidade que somos e que escondemos, que não sabemos ou fingimos não saber. É se aventurar pela selva da alma e pelas exigências do corpo. Nessa aventura, é preciso mergulhar de corpo e alma. E o espírito ali paira sobrelevado em sua consciência da intensidade do existir. Espírito e consciência ouvem sua própria voz em cada palavra, em cada história que Hesse vai tecendo para melhor conduzi-los até o mais íntimo do nosso ser, até mostrar a própria consciência a si mesma. Ler Hesse é encontrar-se refletido no espelho. 
Ao menos esta sua obra, Narciso e Goldmund, me foi o espelho mais límpido em que pude ver-me refletido. Seu Sidarta o fora também, mas em menor escala, porque ali eu vira um de meus lados apenas. Aqui nesta obra, porém, tive de ver-me em faces, em polaridades, em concretude de confusões, contradições e crises. Aqui estive profundamente. Poderia arriscar mesmo dizer estar aqui também o próprio Hesse profundamente. A brilhante composição das duas personagens que nomeiam o romance parece ter sido fruto de uma tentativa de forjar claramente os seus dois maiores influxos, o artista e o pensador. Não poderia me ver menos quanto a esta polaridade.  
Narciso é o símbolo da razão e do pensamento, da vida dedicada à reclusão do mundo e de suas exigências, portanto de suas tentações e frustrações, portanto de sua vida. O clima é frio e puro, e como tal é sem calor, sem vigor, sem vida. O monastério em que vive é lugar de isolamento para ver-se entregue a sua própria servidão ao pensamento e ao divino, como os mortos vivos que já na Grécia antiga traduziam a imagem do pensador: pálido e sombrio, o antro de vida monástica é a mais pura das vidas, porque sem vida. Dedicando-se a estudar Aristóteles e Tomás de Aquino, a firmeza da fé racional de Narciso se tornará em mansidão e temperança, fruto de uma sabedoria cuja tentação encontra-se à beira da soberba e da petulância, 
Goldmund descobre-se, ao encontrar Narciso, um selvagem. Descobre-se o inverso da moeda de seu amigo, e parte pelo mundo como um andarilho após descobrir o amor nos braços de uma bela desconhecida. A sedução da vida sensual é igualmente uma tentação, e transitar de cama em cama é o vigor que mais grosseiramente atinge uma alma artística em busca da beleza nela mesma - já isso nos contava Platão. O jovem e atraente andarilho percorre as regiões inóspitas que formam o mundo; encontra as aldeias e as cidades que o tornam mais suportável e digno de viver. A vida em cidades é sedentária, não lhe constrange senão por alguns dias, talvez em decorrência de alguma bela dama a ser conquistada pelo seu apetite, talvez pela necessidade de se estabelecer nos dias de inverno ou de peste. Um selvagem não poderia ver-se alegre em meio à vida pacata, se não encontrasse nela algum desafio como inspiração. 
As mulheres que encontra são sempre um convite ao desafio. Algumas pelos seus recatos de moça, outras pelos maridos enciumados, e algumas ainda pelas circunstâncias que quase nunca deixam de impor suas ressalvas e seus limites. Com o tempo, os encontros e as conquistas e as perdas vão tornando-se um emaranhado de imagens, agradáveis e pesarosas, em que vê a face de sua mãe desde há muito ausente refletida, cada qual sob um aspecto, mas todas a convidá-lo por seus caminhos tortuosos de delícias, um jardim de vida e de amor cujo fruto encontra-se na boca e nos lábios das belas moças entregues ao prazer. Aprende que a sedução é uma arte, mas que de arte se faz a vida de quem almeja a beleza, porque só na arte é possível estancar o fluxo do dia e da noite que passam, das aventuras amorosas que cessam e que não voltam ou sequer começam, a perpétua transitoriedade da existência. Entre os corpos, sempre é possível encontrar-lhes um ainda mais belo, ainda mais prazeroso, mais cheios de mistérios que os anteriores. Em nenhum pode ver-se resumida a beleza. Mesmo a mais bela mulher que encontra, e que o deixa no limiar entre a vida e a morte pela fúria do marido que lhe flagra as perversões em sua cama, ao instante de um reencontro posterior não restam senão frustrações pela vida levada, um pesar pelas fugas. O andarilho que a meio caminho encontrou a arte é aquele que parece entender ao fim que sem ela mulher alguma na vida valeria a pena. 
Sem as mulheres, porém, não haveria arte. Essa dialética tensional em que se dá a vida de nossa personagem é talvez a dialética mais atraente e repulsiva que carregamos. O acúmulo de vivências nada significa por si, e o mero acumular imagens é o cúmulo do materialismo insípido. Há que se perfazer o laço que as une, a corrente que se esconde por detrás do véu de Maia, o vínculo inevitável entre os corpos belos e a beleza, entre a vida e a morte, entre o mundo e o divino. O retorno ao monastério, sob os auspícios de Narciso que o livra da morte iminente, é um voltar-se para a vida digna de ser vivida. Não lhe cabe o papel de seu amigo: em um monastério, ele que é um selvagem sedutor só pode ser recebido como hóspede e convidado, um artista a desenvolver sua obra, uma alma desgarrada que retorna ao sentido último de sua existência. O desregrar-se foi o encontrar-se para Goldmund 
Em um vasto mundo de possibilidades, sua vida encontrou seu significado na pulsão artística. A imagem da mãe sempre a lhe convidar à vida agora lhe mostra o incomensurável que nem mesmo a própria arte é capaz de satisfazer. A imagem da mãe em sua alma, que não se confundia com os demais rostos das mulheres possuídas, era contudo o significado de todas elas. Mas de sua arte ela lhe escapava. A sua Eva escondia-se como um rosto inefável, cujos traços fugiam a qualquer encenação de figurar em pintura ou em escultura. Sua mãe que lhe chamava à vida e que lhe fora mesmo o sentido de toda a sua jornada, agora o tornara magnânimo pela constatação dessa verdade. O divino está para sempre à margem de nossa vã filosofia, e mesmo a arte é incapaz de lhe apreender. Ao acompanhar a morte de seu amigo dia a dia, Narciso vê-se também ele lançado em dúvidas frente a tudo que acreditou ser imutável, incorruptível, inviolável. Mesmo a vida em reclusão monástica tem seu pecado. O pecado de ausentar-se da vida para almejar vivê-la melhor. Mas não há vida que não esteja nela mesma, Seu sentido, porém, a ultrapassa. Só a morte pode trazer sentido a um existir sem razão de ser - e com razão. 
Ler Hesse é humanamente divino.

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