Ou como mostrar a alma quando não se pode olhá-la no espelho, embora ela esteja ali, nos observando...
Por que estas pulsões ocêanicas?
Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?
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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.
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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.
terça-feira, 31 de dezembro de 2013
Ouço: agora o som ameno tranquiliza
espalhando luxúria
brisa de verão
suor calor paixão
dos olhos de moça tímida
intimida
seduzida
e o passar dos dias é martírio sem tua boca
ausente, queda inquieto o fluxo
a espraiar-se sobre teu corpo pela alma
quente porém inverno
fundo - talvez inferno!
Perco-me
nos transeuntes da avenida Rio Branco
no banco da praça Osório
no velório em Irajá
mesmo já morto, resisto
porque a fome em devorar-me move a veia aberta
pulsão oceânica
impulso em afirmar a vida inconstante
transitória
ilusória
caso não sentida em si mesma aqui dentro
pulsante
no calor amante de escalar os degraus da beleza tua
fascinante
pele que pelo amor se refaz em fogo ardente
fênix que me faz viver revivendo
o tempo que jaz no abismo da memória aos poucos
até não vê-la mais...
Trecho de um poema de fôlego, by Cesar de Alencar
segunda-feira, 30 de dezembro de 2013
A constância da transitoriedade da vida
Panta hei, dizia Heráclito: tudo flui. Talvez ele mesmo não tivesse usado essas palavras, que seus admiradores e detratores se lhe referiam enquanto uma síntese do seu pensamento. Talvez não seja senão mais um daqueles casos em que se procura resumir a grandiosidade de um homem em poucas palavras, um resumo que quase nunca corresponde ao seu valor devido. A questão é que sendo a percepção de Heráclito sobre a transitoriedade das coisas desse mundo uma de suas grandes anunciações, é pouco honroso encerrá-lo como apóstolo do devir, ele que procurou mostrar que em meio à transitoriedade das coisas deve o homem ater-se ao mais importante: ao que seria a razão de ser de toda mudança e de todo fluxo, quer dizer, à 'razão'. Eis o ponto primordial da sabedoria de Heráclito: se tudo neste mundo é transitório e inconstante, atenha-se ao lógos, à razão de ser das coisas desse mundo, à razão de ser de nossa própria existência. Sua alma é capaz de lhe mostrar esse caminho, para evitar que nos percamos no vir a ser infindo, para nos fazer ver que é na razão que a vida humana pode chegar a se realizar com valor. Deixar seguir o curso dos rios, que nunca é o mesmo, e com isso nunca ser o mesmo é naufragar em meio à inconstância do mundo, é caminhar sonâmbulo como se pudesse ver e ouvir as coisas como são, mas com isso perder-se em fragmentos, em instantes, em afluentes. Só aquele que ausculta o lógos está em vigília: sua vida não se perde, mas se encontra no que há de mais profundo - a constância de si.
sábado, 21 de dezembro de 2013
Os deuses gregos da Verdade
DIONÍSIO
O
deus estrangeiro, talvez da Trácia ou do Egito, é sobretudo o deus da
contradição, ou antes, de todas as contradições. Abarca em si vida e morte,
alegria e tristeza, benevolência e crueldade, touro e cordeiro, macho e fêmea,
animal e deus – esta última oposição expressa o homem e a própria humanidade,
o seu ser contraditório e complexo, entremeado pelos impulsos animalescos e a
presença constante da divindade. Dionísio como o deus-animal é o próprio homem
em forma de símbolo. Em Dionísio, a vida se mostra inteira, imensa e profunda,
como sabedoria. A arrogante presunção do conhecimento, de querer abarcar toda a
realidade e toda a vida situando-se dentro dela, brota de Dionísio. E é por
esse motivo que sua manifestação se dá na contradição, pois a avidez de
apreender todo o jogo da vida só poderia se dar ela mesma no jogo, na vida
inteira com todas as suas contradições e seus extremos, na torrente que faz
sucumbir a individualidade enrijecida na imensidão do mundo entregue ao caos.
Isto é o que se percebe tanto em seu mito quanto em seu culto. Enquanto mito,
Dionísio vincula-se a Creta e a “senhora do labirinto”, Ariadne, como aparece
já em Homero, e do qual desponta, para além de outros aspectos, sua essência
contraditória pela relação deus-animal e sua relação com o feminino em primeiro
plano. Essência que se faz por confirmar pelos rituais, documentados na
tragédia, e que nos conduzem a uma devida apreciação dos cultos báquicos e
orgiásticos de louvor à divindade. Cultos em que a dança e a música, como
Nietzsche havia intuído, mas também o jogo e a alucinação, produzem em meio ao
influxo bestial da perda de si uma ruptura contemplativa, artística,
visionária, uma espécie de separação de índole cognoscitiva – quer dizer, o
êxtase, em sentido mais literal, libera um excedente de conhecimento,
e desse modo é instrumento e não fim do ritual. Mas de que tipo de excedente de
conhecimento se está a dizer? As fontes tanto antigas quanto modernas são
unânimes em afirmar que a festa orgiástica, ao liberar o indivíduo
destes seus limites individuais, portanto ao quebrar os condicionantes
de sua experiência cotidiana, faz o homem imergir no estado de oposição e jogo
entre o animal e o divino, um estado que não chega a ser nem um nem outro, mas
expressa a própria condição do deus, um estado de conhecimento não normal nem
cotidiano, um estado que os gregos chamavam de loucura, manía. É
nesse estado de loucura báquica que se chega, nas palavras de Filon, a contemplar
o objeto de seu mais vivo desejo. Tal visão de iniciado, provocada por essa
manía, teve em muitos o caráter de adivinhação, um poder mântico de ver
o futuro, e que é o aspecto mais primitivo, primogênito do conhecimento da
verdade. No entanto, esta ruptura cognoscitiva, vale dizer, essa quebra dos
padrões individuais pela imersão do abissal, produz uma ruptura no interesse
vital: a visão do todo da vida influi sobre o iniciado de modo a tomá-lo em
desprezo pela vida. A culminação do êxtase orgiástico é pois a contradição que
emerge da vida como totalidade, e mesmo a sugestão sexual que tais rituais
encerram demonstram sua essência contraditória. Isso porque se o falo e os
transes das bacantes nuas são conhecidas marcas do culto ao deus, vê-se mesmo a
ausência da concretização do ato sexual como a mais latente de suas
contradições: enquanto as referências explicitas ao ato sexual tem sua
realização nos rituais de fecundidade da deusa Artêmis, as bacantes rechaçam
qualquer tipo de relação sexual, no que a castidade do feminino em transe
frente à virilidade dos sátiros está de acordo com as representações que se
fazem do deus, a um tempo presente e ausente do ritual que se lhe prestam,
simultaneamente o produtor do orgasmo e da sua frustração. É esta contradição a
essência mesma da sabedoria do deus macho-fêmea, do deus-animal.
APOLO
Parece
que os próprios helenos estavam bastante sensíveis a polaridade que se verifica
entre Apolo e Dionísio, no que se percebe mesmo certa possibilidade de
atributos e aspectos por vezes intercambiáveis, como se vê nos poetas do V
século. Esta afinidade natural dá-se na estreita relação que ambos possuem com
a sabedoria, com aquela visão divina que a manía revelava aos homens. Tal
afinidade, contudo, não esconde a inegável antítese que lhes dá o tom, e que
fora muito bem percebida nos tempos modernos por Creuzer, Nietzsche, Rohde e
Nilsson, e que diz respeito, acima de tudo, a sua atuação divinatória, como bem
Platão fez por descrever no Fedro. Em primeiro lugar, também Apolo traz
inúmeras contradições, ele que é ao mesmo tempo o deus da legalidade pacífica
da sabedoria e da tomada violenta que repercute na alma de sua Pítia. Se
Dionísio é o deus de toda contradição, é ele uma só coisa com Apolo que, por
sua vez, é a contradição de Dionísio. Mas a manifestação báquica da sabedoria é
coletivista, dá-se em meio ao delírio grupal das bacantes e sátiros ao som das
flautas que lhe despertam o frenesi. Aqui, a visão mântica é a visão do próprio
deus, e a sua sabedoria não é algo a ele externo, mas a contemplação da
impossibilidade, do absurdo e da contradição plenamente real, que compõe o todo
do ser, o seu ser. Em Apolo, ao contrário, a sabedoria mântica é pela primeira
vez uma oferta do deus, algo externo ao homem que a recebe, e na qual gira a
fama de seu oráculo mais famoso em Delfos, sabedoria que é, como uma flecha,
lançada a um homem, ao indivíduo que na perda de si comunica em palavras a
mensagem ao indivíduo consciente, que lha retém. Seus instrumentos mais
tradicionais, o arco e a lira, representam sinteticamente sua atuação divina: o
canto produzido pela lira é música sedutora, sonhadora, ilusória, que amansa as
bestas e os homens como a música de Orfeu, é, portanto, ilusão que acalma; a
flecha lançada pelo arco submete a vítima à morte à distância, enquanto
Dionísio, feroz e bestial, devorava de perto sua presa, quase como se com ela
viesse a se tornar um. Mas tanto arco como lira são metáforas para seu
verdadeiro instrumento: a palavra. Apolo anuncia sua sabedoria, dá aos homens,
pelas palavras de sua sacerdotisa possuída. Pela primeira vez a sabedoria se
comunica a quem não se embriagou pela manía, Apolo a oferece por
instrumentos, quer seja o arco ou a lira, quer seja a palavra dita por sua
devota, e desse modo ela mesma, sua sacerdotisa, é um seu instrumento, mas já
aqui individual, sem abandonar, assim, a perversidade que o acompanha: o
exercício deste poder se dá indiretamente, obscuramente, ao se servir da
palavra, algo que não pertence à sabedoria, para então provocá-la, despertá-la
no homem que a ouve mas que dela se vê privado, porque a sabedoria divina é
propriamente uma visão. A perversidade aqui é dupla: não só o indivíduo que lhe
serve de instrumento não compreende as palavras que anuncia, mas também não a
compreende o homem consciente que as ouve anunciada, pois que se dá tal
anunciação por enigmas, por oráculo. Exige-se um homem intérprete, capaz de
examiná-la. Nasce a razão, o lógos individual que ilumina o lógos
divino. A natureza da palavra, a que se vê mais adequada para uma ação à
distância, a longo prazo, indireta, encerra nova perversidade aos homens: pois
que não há um só intérprete, e a um indivíduo concreto que se levante para
interpretar as palavras do deus, surge-lhe um oponente, de maneira que as
contendas suscitam dúvidas, e a competição pelo conhecimento persiste como a
máxima das formas de luta. O lógos é a arma mais letal de Apolo, o deus
cuja duplicidade de rosto benévolo e presença terrível configura mesmo a
essência da própria arte, como bem intui Nietzsche, e que era para Platão o
deus por excelência da manía – pois que manía é mântica, ou seja,
arte da revelação, e como arte ela não se manifesta por meio da demência
báquica na qual submerge o próprio Dionísio, mas na loucura que mantém o deus
como espectador.
Fonte consultada: COLLI, Sabedoria Antiga I.
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