DIONÍSIO
O
deus estrangeiro, talvez da Trácia ou do Egito, é sobretudo o deus da
contradição, ou antes, de todas as contradições. Abarca em si vida e morte,
alegria e tristeza, benevolência e crueldade, touro e cordeiro, macho e fêmea,
animal e deus – esta última oposição expressa o homem e a própria humanidade,
o seu ser contraditório e complexo, entremeado pelos impulsos animalescos e a
presença constante da divindade. Dionísio como o deus-animal é o próprio homem
em forma de símbolo. Em Dionísio, a vida se mostra inteira, imensa e profunda,
como sabedoria. A arrogante presunção do conhecimento, de querer abarcar toda a
realidade e toda a vida situando-se dentro dela, brota de Dionísio. E é por
esse motivo que sua manifestação se dá na contradição, pois a avidez de
apreender todo o jogo da vida só poderia se dar ela mesma no jogo, na vida
inteira com todas as suas contradições e seus extremos, na torrente que faz
sucumbir a individualidade enrijecida na imensidão do mundo entregue ao caos.
Isto é o que se percebe tanto em seu mito quanto em seu culto. Enquanto mito,
Dionísio vincula-se a Creta e a “senhora do labirinto”, Ariadne, como aparece
já em Homero, e do qual desponta, para além de outros aspectos, sua essência
contraditória pela relação deus-animal e sua relação com o feminino em primeiro
plano. Essência que se faz por confirmar pelos rituais, documentados na
tragédia, e que nos conduzem a uma devida apreciação dos cultos báquicos e
orgiásticos de louvor à divindade. Cultos em que a dança e a música, como
Nietzsche havia intuído, mas também o jogo e a alucinação, produzem em meio ao
influxo bestial da perda de si uma ruptura contemplativa, artística,
visionária, uma espécie de separação de índole cognoscitiva – quer dizer, o
êxtase, em sentido mais literal, libera um excedente de conhecimento,
e desse modo é instrumento e não fim do ritual. Mas de que tipo de excedente de
conhecimento se está a dizer? As fontes tanto antigas quanto modernas são
unânimes em afirmar que a festa orgiástica, ao liberar o indivíduo
destes seus limites individuais, portanto ao quebrar os condicionantes
de sua experiência cotidiana, faz o homem imergir no estado de oposição e jogo
entre o animal e o divino, um estado que não chega a ser nem um nem outro, mas
expressa a própria condição do deus, um estado de conhecimento não normal nem
cotidiano, um estado que os gregos chamavam de loucura, manía. É
nesse estado de loucura báquica que se chega, nas palavras de Filon, a contemplar
o objeto de seu mais vivo desejo. Tal visão de iniciado, provocada por essa
manía, teve em muitos o caráter de adivinhação, um poder mântico de ver
o futuro, e que é o aspecto mais primitivo, primogênito do conhecimento da
verdade. No entanto, esta ruptura cognoscitiva, vale dizer, essa quebra dos
padrões individuais pela imersão do abissal, produz uma ruptura no interesse
vital: a visão do todo da vida influi sobre o iniciado de modo a tomá-lo em
desprezo pela vida. A culminação do êxtase orgiástico é pois a contradição que
emerge da vida como totalidade, e mesmo a sugestão sexual que tais rituais
encerram demonstram sua essência contraditória. Isso porque se o falo e os
transes das bacantes nuas são conhecidas marcas do culto ao deus, vê-se mesmo a
ausência da concretização do ato sexual como a mais latente de suas
contradições: enquanto as referências explicitas ao ato sexual tem sua
realização nos rituais de fecundidade da deusa Artêmis, as bacantes rechaçam
qualquer tipo de relação sexual, no que a castidade do feminino em transe
frente à virilidade dos sátiros está de acordo com as representações que se
fazem do deus, a um tempo presente e ausente do ritual que se lhe prestam,
simultaneamente o produtor do orgasmo e da sua frustração. É esta contradição a
essência mesma da sabedoria do deus macho-fêmea, do deus-animal.
APOLO
Parece
que os próprios helenos estavam bastante sensíveis a polaridade que se verifica
entre Apolo e Dionísio, no que se percebe mesmo certa possibilidade de
atributos e aspectos por vezes intercambiáveis, como se vê nos poetas do V
século. Esta afinidade natural dá-se na estreita relação que ambos possuem com
a sabedoria, com aquela visão divina que a manía revelava aos homens. Tal
afinidade, contudo, não esconde a inegável antítese que lhes dá o tom, e que
fora muito bem percebida nos tempos modernos por Creuzer, Nietzsche, Rohde e
Nilsson, e que diz respeito, acima de tudo, a sua atuação divinatória, como bem
Platão fez por descrever no Fedro. Em primeiro lugar, também Apolo traz
inúmeras contradições, ele que é ao mesmo tempo o deus da legalidade pacífica
da sabedoria e da tomada violenta que repercute na alma de sua Pítia. Se
Dionísio é o deus de toda contradição, é ele uma só coisa com Apolo que, por
sua vez, é a contradição de Dionísio. Mas a manifestação báquica da sabedoria é
coletivista, dá-se em meio ao delírio grupal das bacantes e sátiros ao som das
flautas que lhe despertam o frenesi. Aqui, a visão mântica é a visão do próprio
deus, e a sua sabedoria não é algo a ele externo, mas a contemplação da
impossibilidade, do absurdo e da contradição plenamente real, que compõe o todo
do ser, o seu ser. Em Apolo, ao contrário, a sabedoria mântica é pela primeira
vez uma oferta do deus, algo externo ao homem que a recebe, e na qual gira a
fama de seu oráculo mais famoso em Delfos, sabedoria que é, como uma flecha,
lançada a um homem, ao indivíduo que na perda de si comunica em palavras a
mensagem ao indivíduo consciente, que lha retém. Seus instrumentos mais
tradicionais, o arco e a lira, representam sinteticamente sua atuação divina: o
canto produzido pela lira é música sedutora, sonhadora, ilusória, que amansa as
bestas e os homens como a música de Orfeu, é, portanto, ilusão que acalma; a
flecha lançada pelo arco submete a vítima à morte à distância, enquanto
Dionísio, feroz e bestial, devorava de perto sua presa, quase como se com ela
viesse a se tornar um. Mas tanto arco como lira são metáforas para seu
verdadeiro instrumento: a palavra. Apolo anuncia sua sabedoria, dá aos homens,
pelas palavras de sua sacerdotisa possuída. Pela primeira vez a sabedoria se
comunica a quem não se embriagou pela manía, Apolo a oferece por
instrumentos, quer seja o arco ou a lira, quer seja a palavra dita por sua
devota, e desse modo ela mesma, sua sacerdotisa, é um seu instrumento, mas já
aqui individual, sem abandonar, assim, a perversidade que o acompanha: o
exercício deste poder se dá indiretamente, obscuramente, ao se servir da
palavra, algo que não pertence à sabedoria, para então provocá-la, despertá-la
no homem que a ouve mas que dela se vê privado, porque a sabedoria divina é
propriamente uma visão. A perversidade aqui é dupla: não só o indivíduo que lhe
serve de instrumento não compreende as palavras que anuncia, mas também não a
compreende o homem consciente que as ouve anunciada, pois que se dá tal
anunciação por enigmas, por oráculo. Exige-se um homem intérprete, capaz de
examiná-la. Nasce a razão, o lógos individual que ilumina o lógos
divino. A natureza da palavra, a que se vê mais adequada para uma ação à
distância, a longo prazo, indireta, encerra nova perversidade aos homens: pois
que não há um só intérprete, e a um indivíduo concreto que se levante para
interpretar as palavras do deus, surge-lhe um oponente, de maneira que as
contendas suscitam dúvidas, e a competição pelo conhecimento persiste como a
máxima das formas de luta. O lógos é a arma mais letal de Apolo, o deus
cuja duplicidade de rosto benévolo e presença terrível configura mesmo a
essência da própria arte, como bem intui Nietzsche, e que era para Platão o
deus por excelência da manía – pois que manía é mântica, ou seja,
arte da revelação, e como arte ela não se manifesta por meio da demência
báquica na qual submerge o próprio Dionísio, mas na loucura que mantém o deus
como espectador.
Fonte consultada: COLLI, Sabedoria Antiga I.
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