Por que estas pulsões ocêanicas?

Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?

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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Os deuses gregos da Verdade



DIONÍSIO

O deus estrangeiro, talvez da Trácia ou do Egito, é sobretudo o deus da contradição, ou antes, de todas as contradições. Abarca em si vida e morte, alegria e tristeza, benevolência e crueldade, touro e cordeiro, macho e fêmea, animal e deus – esta última oposição expressa o homem e a própria humanidade, o seu ser contraditório e complexo, entremeado pelos impulsos animalescos e a presença constante da divindade. Dionísio como o deus-animal é o próprio homem em forma de símbolo. Em Dionísio, a vida se mostra inteira, imensa e profunda, como sabedoria. A arrogante presunção do conhecimento, de querer abarcar toda a realidade e toda a vida situando-se dentro dela, brota de Dionísio. E é por esse motivo que sua manifestação se dá na contradição, pois a avidez de apreender todo o jogo da vida só poderia se dar ela mesma no jogo, na vida inteira com todas as suas contradições e seus extremos, na torrente que faz sucumbir a individualidade enrijecida na imensidão do mundo entregue ao caos. Isto é o que se percebe tanto em seu mito quanto em seu culto. Enquanto mito, Dionísio vincula-se a Creta e a “senhora do labirinto”, Ariadne, como aparece já em Homero, e do qual desponta, para além de outros aspectos, sua essência contraditória pela relação deus-animal e sua relação com o feminino em primeiro plano. Essência que se faz por confirmar pelos rituais, documentados na tragédia, e que nos conduzem a uma devida apreciação dos cultos báquicos e orgiásticos de louvor à divindade. Cultos em que a dança e a música, como Nietzsche havia intuído, mas também o jogo e a alucinação, produzem em meio ao influxo bestial da perda de si uma ruptura contemplativa, artística, visionária, uma espécie de separação de índole cognoscitiva – quer dizer, o êxtase, em sentido mais literal, libera um excedente de conhecimento, e desse modo é instrumento e não fim do ritual. Mas de que tipo de excedente de conhecimento se está a dizer? As fontes tanto antigas quanto modernas são unânimes em afirmar que a festa orgiástica, ao liberar o indivíduo destes seus limites individuais, portanto ao quebrar os condicionantes de sua experiência cotidiana, faz o homem imergir no estado de oposição e jogo entre o animal e o divino, um estado que não chega a ser nem um nem outro, mas expressa a própria condição do deus, um estado de conhecimento não normal nem cotidiano, um estado que os gregos chamavam de loucura, manía. É nesse estado de loucura báquica que se chega, nas palavras de Filon, a contemplar o objeto de seu mais vivo desejo. Tal visão de iniciado, provocada por essa manía, teve em muitos o caráter de adivinhação, um poder mântico de ver o futuro, e que é o aspecto mais primitivo, primogênito do conhecimento da verdade. No entanto, esta ruptura cognoscitiva, vale dizer, essa quebra dos padrões individuais pela imersão do abissal, produz uma ruptura no interesse vital: a visão do todo da vida influi sobre o iniciado de modo a tomá-lo em desprezo pela vida. A culminação do êxtase orgiástico é pois a contradição que emerge da vida como totalidade, e mesmo a sugestão sexual que tais rituais encerram demonstram sua essência contraditória. Isso porque se o falo e os transes das bacantes nuas são conhecidas marcas do culto ao deus, vê-se mesmo a ausência da concretização do ato sexual como a mais latente de suas contradições: enquanto as referências explicitas ao ato sexual tem sua realização nos rituais de fecundidade da deusa Artêmis, as bacantes rechaçam qualquer tipo de relação sexual, no que a castidade do feminino em transe frente à virilidade dos sátiros está de acordo com as representações que se fazem do deus, a um tempo presente e ausente do ritual que se lhe prestam, simultaneamente o produtor do orgasmo e da sua frustração. É esta contradição a essência mesma da sabedoria do deus macho-fêmea, do deus-animal.

APOLO

Parece que os próprios helenos estavam bastante sensíveis a polaridade que se verifica entre Apolo e Dionísio, no que se percebe mesmo certa possibilidade de atributos e aspectos por vezes intercambiáveis, como se vê nos poetas do V século. Esta afinidade natural dá-se na estreita relação que ambos possuem com a sabedoria, com aquela visão divina que a manía revelava aos homens. Tal afinidade, contudo, não esconde a inegável antítese que lhes dá o tom, e que fora muito bem percebida nos tempos modernos por Creuzer, Nietzsche, Rohde e Nilsson, e que diz respeito, acima de tudo, a sua atuação divinatória, como bem Platão fez por descrever no Fedro. Em primeiro lugar, também Apolo traz inúmeras contradições, ele que é ao mesmo tempo o deus da legalidade pacífica da sabedoria e da tomada violenta que repercute na alma de sua Pítia. Se Dionísio é o deus de toda contradição, é ele uma só coisa com Apolo que, por sua vez, é a contradição de Dionísio. Mas a manifestação báquica da sabedoria é coletivista, dá-se em meio ao delírio grupal das bacantes e sátiros ao som das flautas que lhe despertam o frenesi. Aqui, a visão mântica é a visão do próprio deus, e a sua sabedoria não é algo a ele externo, mas a contemplação da impossibilidade, do absurdo e da contradição plenamente real, que compõe o todo do ser, o seu ser. Em Apolo, ao contrário, a sabedoria mântica é pela primeira vez uma oferta do deus, algo externo ao homem que a recebe, e na qual gira a fama de seu oráculo mais famoso em Delfos, sabedoria que é, como uma flecha, lançada a um homem, ao indivíduo que na perda de si comunica em palavras a mensagem ao indivíduo consciente, que lha retém. Seus instrumentos mais tradicionais, o arco e a lira, representam sinteticamente sua atuação divina: o canto produzido pela lira é música sedutora, sonhadora, ilusória, que amansa as bestas e os homens como a música de Orfeu, é, portanto, ilusão que acalma; a flecha lançada pelo arco submete a vítima à morte à distância, enquanto Dionísio, feroz e bestial, devorava de perto sua presa, quase como se com ela viesse a se tornar um. Mas tanto arco como lira são metáforas para seu verdadeiro instrumento: a palavra. Apolo anuncia sua sabedoria, dá aos homens, pelas palavras de sua sacerdotisa possuída. Pela primeira vez a sabedoria se comunica a quem não se embriagou pela manía, Apolo a oferece por instrumentos, quer seja o arco ou a lira, quer seja a palavra dita por sua devota, e desse modo ela mesma, sua sacerdotisa, é um seu instrumento, mas já aqui individual, sem abandonar, assim, a perversidade que o acompanha: o exercício deste poder se dá indiretamente, obscuramente, ao se servir da palavra, algo que não pertence à sabedoria, para então provocá-la, despertá-la no homem que a ouve mas que dela se vê privado, porque a sabedoria divina é propriamente uma visão. A perversidade aqui é dupla: não só o indivíduo que lhe serve de instrumento não compreende as palavras que anuncia, mas também não a compreende o homem consciente que as ouve anunciada, pois que se dá tal anunciação por enigmas, por oráculo. Exige-se um homem intérprete, capaz de examiná-la. Nasce a razão, o lógos individual que ilumina o lógos divino. A natureza da palavra, a que se vê mais adequada para uma ação à distância, a longo prazo, indireta, encerra nova perversidade aos homens: pois que não há um só intérprete, e a um indivíduo concreto que se levante para interpretar as palavras do deus, surge-lhe um oponente, de maneira que as contendas suscitam dúvidas, e a competição pelo conhecimento persiste como a máxima das formas de luta. O lógos é a arma mais letal de Apolo, o deus cuja duplicidade de rosto benévolo e presença terrível configura mesmo a essência da própria arte, como bem intui Nietzsche, e que era para Platão o deus por excelência da manía – pois que manía é mântica, ou seja, arte da revelação, e como arte ela não se manifesta por meio da demência báquica na qual submerge o próprio Dionísio, mas na loucura que mantém o deus como espectador.
Fonte consultada: COLLI, Sabedoria Antiga I.

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