Ou como mostrar a alma quando não se pode olhá-la no espelho, embora ela esteja ali, nos observando...
Por que estas pulsões ocêanicas?
Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?
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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.
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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.
domingo, 16 de fevereiro de 2014
Vida lírica
Meu sumiço destas páginas
é até compreensível,
não é fuga ou perda lírica,
o que me é impossível -
é lirismo em carne e osso,
ferida de sangue e alma:
poesia em vida, em cama.
sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014
Batman, Sheherazade e companhia
Gerações
inteiras foram criadas lendo e ouvindo as histórias em quadrinhos de heróis
justiceiros contra os males que a própria sociedade não é capaz de resolver por
ela mesma. E, diga-se de passagem, sempre foram aplaudidos e reverenciados por
isso, dentro e fora das histórias. Mas é claro que, como um bom leitor, sei
diferenciar as coisas: as histórias em quadrinhos não passam de 'histórias',
inventadas a fim de atrair leitores; mas também sei que nenhuma 'história' é mera
invencionice, desligada da realidade dos seus escritores e leitores: há sempre
aspectos da vida comum que são inegavelmente retratados pela ficção, pois a
arte tem a função mesma de expressar impressões sobre o real, a fim de nos
ajudar a entender as coisas.
Pois
duas coisas parecem não ser bem entendidas ultimamente. A primeira delas é que
não cabe ao Estado ser o responsável pelo bem da humanidade. A autoridade que
geralmente se outorga às forças públicas para se resolver todos os problemas
que nos assolam denota já uma esperança falha e vaga, como aquela que persiste no sobre-humano das histórias de heróis: falha e vaga porque bastaria pensar que para o Estado ser capaz de resolver todos os
problemas da sociedade ele precisaria ter um poder ‘acima’ de toda a sociedade,
e as experiências do século passado já nos mostraram que não é uma boa ideia
depositar todo o poder nas mãos estatais. Afinal, parafraseando os clamores ao
digníssimo Chapolin Colorado, “quem poderá nos defender” contra os abusos do
Estado? Cabe única e exclusivamente à sociedade produzir o seu bem próprio – ou
rezar para que sua esperança em fortificar os tentáculos estatais não acabe em
frustração, que o mocinho acabe se tornando o bandido.
Mas rezar
não é bem algo que se possa dizer uma atitude comum aos apologistas da vida
laica estatal. E é neste aspecto que se encontra a segunda situação não bem
compreendida. Porque é mesmo a defesa do Estado laico aquilo que, em princípio,
possibilitaria a livre discussão entre diferentes credos: um Estado regido pelo
‘monopólio religioso’ engessa, diz-se, o livre debate de ideias. Pois bem, o
que fazemos com nosso Estado laico? O que tenho visto – e, embora Descartes se
sentisse mais realizado em acreditar que os sentidos nos enganam, confio que
meus olhos enxergam a realidade, não uma ilusão – é a tentativa de projetar um
discurso dominante, ‘monopolista’, uma espécie de aura mística e, porque não, ‘religiosa’
em torno a certos temas, como se a opinião adversa não pudesse se expor – pior,
tivesse de ser calada. A homogeneidade de opiniões é alienante em qualquer tipo
de sociedade, seja ela ‘religiosa’ ou ‘laica’. Desejar, como se tem desejado
ultimamente, que apenas um discurso se projete como dignamente ‘humano’ é
alienar os homens da condição mais básica de sua existência em um Estado laico:
a livre expressão.
Pois
bem, é dignamente honroso – e de minha parte, louvo: corajosamente exercido – o
direito à livre expressão da jornalista do SBT Rachel Sheherazade. Em época de
monotonia de opiniões, é sempre bem vindo quem tenta olhar a coisa de um outro
lado, dizer o que não se vê, ou se vê mas não se quer dizer. Na verdade, seu último
comentário sobre o caso dos ‘justiceiros’ da vida real ressoou a voz de muitos
contra o atual estado de coisas. Mas outros viram nessa voz apenas o ‘berro
fascista’ contra os direitos humanos, e não tardaram a incentivar por todos os
meios a iniciativa de fazê-la calar à força. Interessante notar que ela mesma,
vítima semanas atrás da ‘liberdade de expressão’ de um professor – que péssimo!
– de ‘filosofia’ que lhe desejou fosse estuprada, sequer recebeu o apoio destes
que defendem hoje os direitos humanos do garoto do Flamengo. Isso porque os DH
não servem para todos – só para aqueles que realmente precisam, que estão à
margem da sociedade, que são por isso injustiçados, coitados... Tomara que
possam fazer algo, o mais rápido possível, em favor dos DH dos marginalizados de hoje, que
já não podem comprar as caríssimas edições das histórias em quadrinhos – afinal,
eles deveriam ao menos ter alguma esperança de verem o Estado-herói lhes salvar dessa
sociedade cruel que lhes oprime todos os dias. E aqui, eu diria, a inversão não
foi por acaso: é proposital que nos capítulos que vivemos atualmente a cidade
de Gotham City seja culpada pelos marginais excluídos no Asilo Arkham, e que
reste ao Batman salvar Coringa e companhia dos males infindos desta cidade suja
e corrupta. Aos que não foram, como eu, criados em meio aos grandes super-heróis,
desculpem-me as referências feitas aqui. Espero, de verdade, não ser também censurado
por perverter o discurso dos ‘mocinhos’...
domingo, 2 de fevereiro de 2014
Dostoiévski - Uma criatura dócil
Dócil
é certamente um aspecto que foge à primeira vista da personagem que narra a
história. O agiota enlouquecido pela visão da verdade sobre sua mulher não vê
senão sua culpa, sua desgraça, sua mediocridade. Uma mediocridade, contudo, que
se faz profundamente ciente, julgada pela consciência moral de alguém que se
percebe a si mesmo, suas mazelas e suas qualidades, como um complexo conjunto
de pulsações, como uma teia que lhe pervade o espírito a todo instante, seja
calado, seja agindo. E de fato a docilidade da criatura, a mulher por quem se
enamora, é bom que se diga, por comiseração e requintes de crueldade, é uma
docilidade aos seus olhos. Muito pouco ficamos sabendo sobre o que de fato a
jovem pensa, sobre si a vida ou o mundo. O pensamento aqui é conferido ao
agiota, ao homem de penhor, que penhora inclusive sua felicidade tendo em vista
obter algum lucro. Sórdido, como nós somos. Calculista. Racionalizar os
sentimentos é algo que quase nunca dá certo, se se aplica todas as fichas na
razão. É preciso arriscar, como num jogo. Sorte no amor é uma jogada de sorte.
Há que ser agraciado pelo destino. Destino ou acaso – ambos encerram o momento
fatídico para este homem, horrorizado por sua cegueira em não ver bem diante de
si quanto havia de dócil em uma tal criatura! Mais do que poderia imaginar! E
quase sempre pecamos de igual forma, pela ausência de perspectiva sobre a alma
alheia, pela mesquinhez de todo o desejo mais imediato, a elucubração acerca da
imagem que projetamos sobre o outro, acerca do que pode este pensar de nós... Um
romance sobre o pensamento e a sensibilidade – eis a melhor definição que
encontro para a experiência de ler esta obra de Dostoiévski. Um chamado ao
complexo de nossos sentimentos, mais ainda dos pensamentos que nos assolam,
porque inteiramente mesclados aos impulsos de sobrevivência e de vivência,
entrecruzados com as mais inquietantes sensações realizadas e desejadas,
mergulhados na solidão, na imensidão de nós mesmos, de que a linguagem não dá
conta, que o olhar apenas sugere. Por isso o agiota, desesperado ao ver-se
outra vez sozinho, retorna às lembranças para se explicar as razões de tamanha
perdição. Seu amor jogou-se para a morte, ele que a encontrou tão frágil e
dócil, ali lançada ao chão faz os papéis se inverterem. Eis que a criatura dócil
produz a docilidade no homem de penhores, pois que a verdade da bondade da
mulher lhe mostra sua miséria, sua necessidade de amar. A razão mal compreende o
acaso, o destino que o fez, meros cinco minutos, não ser capaz de modificá-lo.
Sua vida em nova solidão é uma afronta ao egoísmo até aqui alimentado. O
convite da verdade que se revelou é o da bondade – aquilo mesmo pelo qual a
então criatura dócil, ferida pela bondade despertada em seu homem, não pôde
resistir a sua própria mesquinhez. A morte lhe foi um escapar de sua própria
miséria. Eis a dialética da bondade: o bom revela o mau que não pode senão revelar o bem. Ou, nas palavras de Mefistófeles no Fausto de Goethe,
naquela frase que o amor lhes revelou: “eu sou uma parte daquela força que
quer o mal, mas cria o bem”.
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