Dócil
é certamente um aspecto que foge à primeira vista da personagem que narra a
história. O agiota enlouquecido pela visão da verdade sobre sua mulher não vê
senão sua culpa, sua desgraça, sua mediocridade. Uma mediocridade, contudo, que
se faz profundamente ciente, julgada pela consciência moral de alguém que se
percebe a si mesmo, suas mazelas e suas qualidades, como um complexo conjunto
de pulsações, como uma teia que lhe pervade o espírito a todo instante, seja
calado, seja agindo. E de fato a docilidade da criatura, a mulher por quem se
enamora, é bom que se diga, por comiseração e requintes de crueldade, é uma
docilidade aos seus olhos. Muito pouco ficamos sabendo sobre o que de fato a
jovem pensa, sobre si a vida ou o mundo. O pensamento aqui é conferido ao
agiota, ao homem de penhor, que penhora inclusive sua felicidade tendo em vista
obter algum lucro. Sórdido, como nós somos. Calculista. Racionalizar os
sentimentos é algo que quase nunca dá certo, se se aplica todas as fichas na
razão. É preciso arriscar, como num jogo. Sorte no amor é uma jogada de sorte.
Há que ser agraciado pelo destino. Destino ou acaso – ambos encerram o momento
fatídico para este homem, horrorizado por sua cegueira em não ver bem diante de
si quanto havia de dócil em uma tal criatura! Mais do que poderia imaginar! E
quase sempre pecamos de igual forma, pela ausência de perspectiva sobre a alma
alheia, pela mesquinhez de todo o desejo mais imediato, a elucubração acerca da
imagem que projetamos sobre o outro, acerca do que pode este pensar de nós... Um
romance sobre o pensamento e a sensibilidade – eis a melhor definição que
encontro para a experiência de ler esta obra de Dostoiévski. Um chamado ao
complexo de nossos sentimentos, mais ainda dos pensamentos que nos assolam,
porque inteiramente mesclados aos impulsos de sobrevivência e de vivência,
entrecruzados com as mais inquietantes sensações realizadas e desejadas,
mergulhados na solidão, na imensidão de nós mesmos, de que a linguagem não dá
conta, que o olhar apenas sugere. Por isso o agiota, desesperado ao ver-se
outra vez sozinho, retorna às lembranças para se explicar as razões de tamanha
perdição. Seu amor jogou-se para a morte, ele que a encontrou tão frágil e
dócil, ali lançada ao chão faz os papéis se inverterem. Eis que a criatura dócil
produz a docilidade no homem de penhores, pois que a verdade da bondade da
mulher lhe mostra sua miséria, sua necessidade de amar. A razão mal compreende o
acaso, o destino que o fez, meros cinco minutos, não ser capaz de modificá-lo.
Sua vida em nova solidão é uma afronta ao egoísmo até aqui alimentado. O
convite da verdade que se revelou é o da bondade – aquilo mesmo pelo qual a
então criatura dócil, ferida pela bondade despertada em seu homem, não pôde
resistir a sua própria mesquinhez. A morte lhe foi um escapar de sua própria
miséria. Eis a dialética da bondade: o bom revela o mau que não pode senão revelar o bem. Ou, nas palavras de Mefistófeles no Fausto de Goethe,
naquela frase que o amor lhes revelou: “eu sou uma parte daquela força que
quer o mal, mas cria o bem”.
Ou como mostrar a alma quando não se pode olhá-la no espelho, embora ela esteja ali, nos observando...
Por que estas pulsões ocêanicas?
Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?
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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.
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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.
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