Gerações
inteiras foram criadas lendo e ouvindo as histórias em quadrinhos de heróis
justiceiros contra os males que a própria sociedade não é capaz de resolver por
ela mesma. E, diga-se de passagem, sempre foram aplaudidos e reverenciados por
isso, dentro e fora das histórias. Mas é claro que, como um bom leitor, sei
diferenciar as coisas: as histórias em quadrinhos não passam de 'histórias',
inventadas a fim de atrair leitores; mas também sei que nenhuma 'história' é mera
invencionice, desligada da realidade dos seus escritores e leitores: há sempre
aspectos da vida comum que são inegavelmente retratados pela ficção, pois a
arte tem a função mesma de expressar impressões sobre o real, a fim de nos
ajudar a entender as coisas.
Pois
duas coisas parecem não ser bem entendidas ultimamente. A primeira delas é que
não cabe ao Estado ser o responsável pelo bem da humanidade. A autoridade que
geralmente se outorga às forças públicas para se resolver todos os problemas
que nos assolam denota já uma esperança falha e vaga, como aquela que persiste no sobre-humano das histórias de heróis: falha e vaga porque bastaria pensar que para o Estado ser capaz de resolver todos os
problemas da sociedade ele precisaria ter um poder ‘acima’ de toda a sociedade,
e as experiências do século passado já nos mostraram que não é uma boa ideia
depositar todo o poder nas mãos estatais. Afinal, parafraseando os clamores ao
digníssimo Chapolin Colorado, “quem poderá nos defender” contra os abusos do
Estado? Cabe única e exclusivamente à sociedade produzir o seu bem próprio – ou
rezar para que sua esperança em fortificar os tentáculos estatais não acabe em
frustração, que o mocinho acabe se tornando o bandido.
Mas rezar
não é bem algo que se possa dizer uma atitude comum aos apologistas da vida
laica estatal. E é neste aspecto que se encontra a segunda situação não bem
compreendida. Porque é mesmo a defesa do Estado laico aquilo que, em princípio,
possibilitaria a livre discussão entre diferentes credos: um Estado regido pelo
‘monopólio religioso’ engessa, diz-se, o livre debate de ideias. Pois bem, o
que fazemos com nosso Estado laico? O que tenho visto – e, embora Descartes se
sentisse mais realizado em acreditar que os sentidos nos enganam, confio que
meus olhos enxergam a realidade, não uma ilusão – é a tentativa de projetar um
discurso dominante, ‘monopolista’, uma espécie de aura mística e, porque não, ‘religiosa’
em torno a certos temas, como se a opinião adversa não pudesse se expor – pior,
tivesse de ser calada. A homogeneidade de opiniões é alienante em qualquer tipo
de sociedade, seja ela ‘religiosa’ ou ‘laica’. Desejar, como se tem desejado
ultimamente, que apenas um discurso se projete como dignamente ‘humano’ é
alienar os homens da condição mais básica de sua existência em um Estado laico:
a livre expressão.
Pois
bem, é dignamente honroso – e de minha parte, louvo: corajosamente exercido – o
direito à livre expressão da jornalista do SBT Rachel Sheherazade. Em época de
monotonia de opiniões, é sempre bem vindo quem tenta olhar a coisa de um outro
lado, dizer o que não se vê, ou se vê mas não se quer dizer. Na verdade, seu último
comentário sobre o caso dos ‘justiceiros’ da vida real ressoou a voz de muitos
contra o atual estado de coisas. Mas outros viram nessa voz apenas o ‘berro
fascista’ contra os direitos humanos, e não tardaram a incentivar por todos os
meios a iniciativa de fazê-la calar à força. Interessante notar que ela mesma,
vítima semanas atrás da ‘liberdade de expressão’ de um professor – que péssimo!
– de ‘filosofia’ que lhe desejou fosse estuprada, sequer recebeu o apoio destes
que defendem hoje os direitos humanos do garoto do Flamengo. Isso porque os DH
não servem para todos – só para aqueles que realmente precisam, que estão à
margem da sociedade, que são por isso injustiçados, coitados... Tomara que
possam fazer algo, o mais rápido possível, em favor dos DH dos marginalizados de hoje, que
já não podem comprar as caríssimas edições das histórias em quadrinhos – afinal,
eles deveriam ao menos ter alguma esperança de verem o Estado-herói lhes salvar dessa
sociedade cruel que lhes oprime todos os dias. E aqui, eu diria, a inversão não
foi por acaso: é proposital que nos capítulos que vivemos atualmente a cidade
de Gotham City seja culpada pelos marginais excluídos no Asilo Arkham, e que
reste ao Batman salvar Coringa e companhia dos males infindos desta cidade suja
e corrupta. Aos que não foram, como eu, criados em meio aos grandes super-heróis,
desculpem-me as referências feitas aqui. Espero, de verdade, não ser também censurado
por perverter o discurso dos ‘mocinhos’...
Nenhum comentário:
Postar um comentário