Por que estas pulsões ocêanicas?

Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?

***

A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Batman, Sheherazade e companhia




Gerações inteiras foram criadas lendo e ouvindo as histórias em quadrinhos de heróis justiceiros contra os males que a própria sociedade não é capaz de resolver por ela mesma. E, diga-se de passagem, sempre foram aplaudidos e reverenciados por isso, dentro e fora das histórias. Mas é claro que, como um bom leitor, sei diferenciar as coisas: as histórias em quadrinhos não passam de 'histórias', inventadas a fim de atrair leitores; mas também sei que nenhuma 'história' é mera invencionice, desligada da realidade dos seus escritores e leitores: há sempre aspectos da vida comum que são inegavelmente retratados pela ficção, pois a arte tem a função mesma de expressar impressões sobre o real, a fim de nos ajudar a entender as coisas.

Pois duas coisas parecem não ser bem entendidas ultimamente. A primeira delas é que não cabe ao Estado ser o responsável pelo bem da humanidade. A autoridade que geralmente se outorga às forças públicas para se resolver todos os problemas que nos assolam denota já uma esperança falha e vaga, como aquela que persiste no sobre-humano das histórias de heróis: falha e vaga porque bastaria pensar que para o Estado ser capaz de resolver todos os problemas da sociedade ele precisaria ter um poder ‘acima’ de toda a sociedade, e as experiências do século passado já nos mostraram que não é uma boa ideia depositar todo o poder nas mãos estatais. Afinal, parafraseando os clamores ao digníssimo Chapolin Colorado, “quem poderá nos defender” contra os abusos do Estado? Cabe única e exclusivamente à sociedade produzir o seu bem próprio – ou rezar para que sua esperança em fortificar os tentáculos estatais não acabe em frustração, que o mocinho acabe se tornando o bandido.

Mas rezar não é bem algo que se possa dizer uma atitude comum aos apologistas da vida laica estatal. E é neste aspecto que se encontra a segunda situação não bem compreendida. Porque é mesmo a defesa do Estado laico aquilo que, em princípio, possibilitaria a livre discussão entre diferentes credos: um Estado regido pelo ‘monopólio religioso’ engessa, diz-se, o livre debate de ideias. Pois bem, o que fazemos com nosso Estado laico? O que tenho visto – e, embora Descartes se sentisse mais realizado em acreditar que os sentidos nos enganam, confio que meus olhos enxergam a realidade, não uma ilusão – é a tentativa de projetar um discurso dominante, ‘monopolista’, uma espécie de aura mística e, porque não, ‘religiosa’ em torno a certos temas, como se a opinião adversa não pudesse se expor – pior, tivesse de ser calada. A homogeneidade de opiniões é alienante em qualquer tipo de sociedade, seja ela ‘religiosa’ ou ‘laica’. Desejar, como se tem desejado ultimamente, que apenas um discurso se projete como dignamente ‘humano’ é alienar os homens da condição mais básica de sua existência em um Estado laico: a livre expressão.

Pois bem, é dignamente honroso – e de minha parte, louvo: corajosamente exercido – o direito à livre expressão da jornalista do SBT Rachel Sheherazade. Em época de monotonia de opiniões, é sempre bem vindo quem tenta olhar a coisa de um outro lado, dizer o que não se vê, ou se vê mas não se quer dizer. Na verdade, seu último comentário sobre o caso dos ‘justiceiros’ da vida real ressoou a voz de muitos contra o atual estado de coisas. Mas outros viram nessa voz apenas o ‘berro fascista’ contra os direitos humanos, e não tardaram a incentivar por todos os meios a iniciativa de fazê-la calar à força. Interessante notar que ela mesma, vítima semanas atrás da ‘liberdade de expressão’ de um professor – que péssimo! – de ‘filosofia’ que lhe desejou fosse estuprada, sequer recebeu o apoio destes que defendem hoje os direitos humanos do garoto do Flamengo. Isso porque os DH não servem para todos – só para aqueles que realmente precisam, que estão à margem da sociedade, que são por isso injustiçados, coitados... Tomara que possam fazer algo, o mais rápido possível, em favor dos DH dos marginalizados de hoje, que já não podem comprar as caríssimas edições das histórias em quadrinhos – afinal, eles deveriam ao menos ter alguma esperança de verem o Estado-herói lhes salvar dessa sociedade cruel que lhes oprime todos os dias. E aqui, eu diria, a inversão não foi por acaso: é proposital que nos capítulos que vivemos atualmente a cidade de Gotham City seja culpada pelos marginais excluídos no Asilo Arkham, e que reste ao Batman salvar Coringa e companhia dos males infindos desta cidade suja e corrupta. Aos que não foram, como eu, criados em meio aos grandes super-heróis, desculpem-me as referências feitas aqui. Espero, de verdade, não ser também censurado por perverter o discurso dos ‘mocinhos’...

Nenhum comentário: