Em um
caderno que descansa sempre no canto da escrivaninha do quarto – era onde eu
rabiscava os versos que me assaltavam a mente vez ou outra. E versos nos são
como momentos em que a vida torna-se potencialmente interessante, pois estamos
como que suspensos de todas as contingências, a mirá-la tão-somente em sua mais
plena realidade. A poesia nos serve como recordação deste instante único, e
apenas pela sua materialização escrita é que também sua forma ganha a mesma
dimensão essencial de vida que em nosso espírito se faz operante. É pela forma
que o vigor poético se mantém, perdura: uma forma que modela a massa disforme
das matérias de nossas sensações. Forma vigorosa em almas como João Cabral, em
que métrica e estrutura de obra se entrelaçam às vivências, aos conteúdos, e os
eternizam. De fato, não há poesia sem forma. Em meu caderno – formas destoantes
ganham fôlego, perduram em minha própria alma à medida que os vou re-lendo,
e se intensificam, se modificam mais ao modificar-me pelo prazer de lê-los. Re-ler
poesias é adentrar o mundo particular, único do poeta, que se abre ao mundo
pelos versos exalados de sua percepção singular. Deve-se senti-la, e já não
mais a leitura é suficiente – faz-se preciso ouvi-la, prová-la, tocá-la,
aspirar o ar mais puro que apenas pela alma do poeta se gerou e que se faz
aspirar. A poesia é perfume, é iguaria das mais caras e raras, é nobreza de
espírito e de caráter. O som mais límpido que se depreende de nosso universo
infinito particular. Pode haver um dia que alguém se interesse por minha
poesia? Este mundo que se constrói à medida que o vou tecendo pelas linhas
mestras de meus versos? Interessar-se por eles é certamente interessar-se por
mim, mas quem há que se interesse por mim? Nesta solidão em que vivo – também
meus versos se condenam ao esquecimento. O mundo perde o prazer pela poesia, e em
certa medida porque a poesia parece deixar o mundo; ou somos nós que dela
abdicamos? Alguém ainda seria capaz de olhar o horizonte ao cair da tarde, e
vislumbrar uma espécie de solidão fria e soturna lhe preencher a alma, enquanto
o sol se pondo lhe sugere este fim de mais um ciclo, de mais uma eternidade? Ou
tocar a correnteza de um rio de águas límpidas e sentir pulsar em seu peito a
sensação de um prazer inexplicável, que o som das águas provoca até mesmo a
quem não as possa ouvir? Há alguém que ainda seja capaz de aspirar este ar mais
puro e elevado, a cura de toda enfermidade, e ver descerem lágrimas de seus
olhos por entender a imensa grandeza que há em existir?
Porque ao se
defrontar com a poesia, a alma se comove pela sensação que o poeta vivenciou, e
este duplamente: uma vez ao vivê-la, outra, ao descrevê-la. Este prazer último,
que ao leitor é dado sentir, intenta provocar novamente o prazer originário, a
sensação singular que a alma do poeta oferece ao recriá-la em verso, sua
experiência para ser lida, cantada, sentida. A poesia é a repetição do sentir
único apreendido pelo poeta, com a intenção de torná-lo possível novamente em
sua experimentação. Ela parece conferir à consciência do leitor-ouvinte o
prazer de navegar por mares que lhe são inconscientes, ou conscientemente debilitados,
incapazes de se expressar em sua experimentação, pela falta de cor que os
traduza em tons precisos. O poeta é o que possibilita ao homem que o escuta e
lê e sente um contato íntimo com sua mais fundamental natureza. Escrevo por
isso sem descanso, noite e dia. É um vício este que me consome. E por ele consumo
meu tempo em palavras, que ao mesmo tempo me constroem, e que ao me
construírem, me destroem, até re-criar o novo, de novo, para o mundo e
para mim mesma.
Trecho do meu livro Falosofia de Mulher
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