Hesse legou-nos uma bela metáfora acerca do demasiado humano.
O jogo das contas de vidro é uma
metáfora acerca da nossa condição de homens, situada inevitavelmente entre a mundanidade dos influxos de instintos animalescos e uma conquistada elevação
intelectual em busca do belo e do bem. Deixa-nos lembrar de Nietzsche, faz-nos
esquecer de Marx. O primeiro, em sua inescapável paixão platônica, só fez
reverberar em seus aforismos, dionisiacamente apolíneos, as mais belas palavras
de Sócrates em Banquete. No fundo, o
apóstolo de Zaratustra tinha consciência daquela vontade que move o homem à
iluminação, ele mesmo encontrando a sua para além do bem e do mal. Pensou
tivesse ter-lhe escapado. O segundo, entretanto, pensou tê-lo com toda a insistência
de anos dedicados a não fazer mais que deixar patente a prisão em que se
encerrou. Erro Capital supor
livrar-se de seus demônios assim tão facilmente no campo do puro abstratismo
econômico. As veias abertas de sua irreligiosidade impregnaram suas análises de
ideologia fanática e opressiva. Há que se esquecer de Marx e de sua ideologia
quando a vontade de verdade torna-se
inescapável. Bela e boa metáfora é tecida nessa obra de Hesse. Metáfora que soa
indelicada a quem se mantém deveras apegado aos instintos mais baixos, ao
dinheiro e ao prazer, à economia e à política. Hesse traz-nos de volta ao
caminho da virtude e da sabedoria, que vai além do bem que o mal contém, pois não
despreza o mal que só o bem traz. Hesse compôs a metáfora.
Sua imagem é a de um país futurista em que uma cidade, de
nome Castália, emerge há décadas como
a obra mais elevada do gênero humano. Dona dos maiores legados culturais de
toda a humanidade, a vida de dedicação sacerdotal ao ofício do estudo e da
educação não pôde senão exercitar o gênio humano a elaborar um jogo em que, com
a simplicidade dos hexagramas do I Ching, se chega a conjugar as mais altas
conquistas da arte e do saber com apenas algumas contas de vidro. O jogo de
avelórios é ambos: a excelência humana e a razão de Castália existir. A
casta da Elite, como é chamada, não
poderia ver justificada sua funcionalidade social, política e econômica, a não
ser pela existência e reverência ao jogo – obra-prima reconhecida por todos, há
que se notar. Na imagem de Hesse, mesmo os homens entregues à mundanidade de
seu viver reconhecem, não sem alguma distância irônica, o valor e a necessária
condição social de uma cidade de Castas.
Como excelência humana o jogo e a cidade se apresentam aos seus praticantes,
embora aos mundanos não permaneça, em relação a eles, senão uma distância que
de reverente acaba com o tempo desgastada em indiferença.
O tempo realmente desgasta qualquer excelência e sua razão de
ser, se estas não forem perseguidas com diligente aproximação. Há que se
aproximar de Castália, da ordem e da harmonia, para escapar aos influxos
dispersantes e alienantes da vida mundana multiforme. É o que revela a
personagem de Designori – amigo-rival de José Servo, a figura biografada na
obra de Hesse. Mas a verdadeira vida narrada aqui não diz respeito a Servo, a
Designori ou ao amigo de Servo, Tegularius. A obra narra a vida do espírito,
que só não é grafado com a primeira letra em maiúscula para que não confundamos
a vida narrada com aquela imaginada por Hegel. Não se trata no livro de Hesse
de recontar certa biografia de uma entidade supra-material, transposta ao campo
da história por Marx, desmistificada em além-homem por Nietzsche. Em Hesse,
entra em jogo as concepções mais tradicionais acerca da vida dedicada ao
imaterial, de modo a formar em nós um vislumbre daquilo que comove por séculos
santos e sábios.
Com o tempo, seguimos a sua narrativa e vamos nos dando conta
de que a força espiritual invade a existência silenciosamente, como a existência
silente de Castália parece mesmo ilustrar face ao mundano. Ordem e harmonia
exalam dessa cidade de castas, e a repulsa que sentia Designori em sua
juventude volta-se, na maturidade, como uma angústia, um desejo de
entendimento. Porque ainda que as fórmulas e formas solidificadas pela tradição
nos pareçam alienantes e castradoras, a nós jovens que não queremos mais que
conquistar o mundo pelo ímpeto de nossa vulgaridade tida como genial e
excelente, percebemos com o tempo que esse ímpeto, desgastando-se face à
realidade nua e crua, tende a voltar-se ao que rejeitou por revolta, a
procurar-se ali mesmo onde achava não poder se encontrar, e no fim acabar
suspirando aliviado por haver algo assim como a tradição humana. A ordem e a
harmonia, assuntos envelhecidos para nós outros, modernos alienados em lutas de
classe e niilismo, será sempre o fundamento do caminho do presente para o
eterno. É questão de tempo que se venha a percebê-lo.
Não posso deixar de perceber que o fluxo da narrativa ilustra
a finalidade essencial do biografado. O jogo de avelórios, como personagem
principal do romance-ensaio de Hesse, é a imagem retumbante da vida do espírito
lançada em seu lugar no mundo: um jogo, religioso e devocional a quem pratica,
espirituoso e não de todo inteligível a quem o admira de longe. As vidas de
Servo e de Designori no fundo só são inteligíveis em seus papeis sociais e em
seu sentido de vida face ao jogo. E não se trata de mero artifício as ditas
contas de vidro. No debate travado por ambos nos capítulos finais, fica clara a
posição de cada um face à tradição encarnada pela prática e manutenção do jogo,
por seu rito e mito. Designori, mudano atraído em definitivo pelo mundo que
sempre lhe parecera mais colorido que Castália, não fez senão o movimento pouco
perceptível em quem se aventura pelas luxúrias da vida: encara o peso de ter
rejeitado o fundamento espiritual de sua existência e não procura outra forma
de resgatar-se a não ser em nova aproximação com a cidade de castas. A José
Servo, porém, as frutíferas e de certo providenciais retiradas que fez ao mundo
durante sua prática devocional à Castália mostraram-se, em meio ao
surpreendente desfecho de sua biografia, a intuição necessária para se perceber
que toda vida dedicada ao espírito demanda um necessário reconhecimento do
material: ou seja, que a mera reclusão junto à intelectualidade não seria
possível sem que a pólis lhe oferecesse essa possibilidade: no fundo, a
lição que Servo nos dá, com um nome que reverbera toda a sua significação, é a
de que não se pode chegar a ser senhor de uma vida espiritual sem o sê-lo em
servidão quanto à vida material que lhe dá existência, e que para ser senhor
sobre as exigências da matéria é preciso sê-lo em servidão ao espírito. Esta
dialética da vida humana, longe de se encerrar em uma síntese hegeliana ou
marxista, parece sustentar o peso da tragicidade nietzschiana da antinomia, da
luta dos opostos à maneira de Heráclito, oferecendo ao fim uma saída que é
apenas uma entrada na existência mesma do conflito.
José Servo, o senhor do jogo de avelórios, atinge em vida a
mitificação de sua jornada em busca da sustentação do conflito com a mesma
simplicidade pela qual se deixou conduzir nas experiências que o iniciaram à
maior de todas as dificuldades de um verdadeiro mestre intelectual e
espiritual: a de reconhecer a fragilidade de sua condição social. Nem todos
chegam a ser enviados à Castália, nem todos chegam a permanecer-lhe. A via
intelectual e espiritual é uma travessia de poucos, bem poucos. Uma fragilidade
que parece ter algo a ver com as denúncias que já Platão havia feito em sua República, à sombra da morte injusta de
seu mestre Sócrates, acerca da vida perigosa do amante da verdade, uma provável vítima da violência bárbara da
massa de ignorantes. Aristóteles dizia ser a filosofia algo realizável apenas quando as necessidades materiais
da existência tinham sido supridas, e não é difícil perceber por essas
indicações de que maneira a via espiritual depende da sua contraparte material.
A ameaça de Castália, sentida por Servo como em um lampejo
fulgurante daqueles em que se chega a ver uma verdade, é ainda e sempre a
condição fragilizada do homem entreposto eternamente entre a imersão na
animalidade e a elevação ao vislumbre do espírito. Mas se esta é sua condição individual
inevitável, a situação social de perigo pela ignorância geral lhe condena
duplamente, quer seja pela impotência em face de qualquer tentativa de que a
humanidade como um todo se volte ao seu princípio espiritual, quer seja pela certeza de se ver lançado a uma preparação
para a morte, como defende Sócrates pouco antes de morrer condenado pela
ignorância geral. E não se pode ignorar o perigo que a tradição do espírito
enfrenta, em qualquer tempo histórico. A brilhante metáfora de Hesse nos deixa
ver que a vilania do apelo social de certas ideologias que se voltam contra a
tradição tem sua mácula iniciada em cada indivíduo que a si mesmo se fez refém
da revolta contra aquilo mesmo que lhe fez ser o que é. A consciência de
Designori mostrou-lhe o erro. A consciência de Servo também. No entanto, coube
ao mestre do jogo o perigo maior: abrir mão do conforto espiritual da posição
mais alta em uma sociedade de castas para aventurar-se a mostrar, a um único
jovem mundano que seja, o valor e a necessidade da vida do espírito. Todos
terão que realizar a mesma escolha algum dia. Hesse convidou-nos a fazer a sua.
Faço a minha ao esquecer Marx, sem deixar de lembrar Nietzsche. Escolho a
consciência do erro.
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