Por que estas pulsões ocêanicas?

Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?

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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.

domingo, 13 de julho de 2014

Hesse - O Jogo das Contas de Vidro



Hesse legou-nos uma bela metáfora acerca do demasiado humano. O jogo das contas de vidro é uma metáfora acerca da nossa condição de homens, situada inevitavelmente entre a mundanidade dos influxos de instintos animalescos e uma conquistada elevação intelectual em busca do belo e do bem. Deixa-nos lembrar de Nietzsche, faz-nos esquecer de Marx. O primeiro, em sua inescapável paixão platônica, só fez reverberar em seus aforismos, dionisiacamente apolíneos, as mais belas palavras de Sócrates em Banquete. No fundo, o apóstolo de Zaratustra tinha consciência daquela vontade que move o homem à iluminação, ele mesmo encontrando a sua para além do bem e do mal. Pensou tivesse ter-lhe escapado. O segundo, entretanto, pensou tê-lo com toda a insistência de anos dedicados a não fazer mais que deixar patente a prisão em que se encerrou. Erro Capital supor livrar-se de seus demônios assim tão facilmente no campo do puro abstratismo econômico. As veias abertas de sua irreligiosidade impregnaram suas análises de ideologia fanática e opressiva. Há que se esquecer de Marx e de sua ideologia quando a vontade de verdade torna-se inescapável. Bela e boa metáfora é tecida nessa obra de Hesse. Metáfora que soa indelicada a quem se mantém deveras apegado aos instintos mais baixos, ao dinheiro e ao prazer, à economia e à política. Hesse traz-nos de volta ao caminho da virtude e da sabedoria, que vai além do bem que o mal contém, pois não despreza o mal que só o bem traz. Hesse compôs a metáfora.

Sua imagem é a de um país futurista em que uma cidade, de nome Castália, emerge há décadas como a obra mais elevada do gênero humano. Dona dos maiores legados culturais de toda a humanidade, a vida de dedicação sacerdotal ao ofício do estudo e da educação não pôde senão exercitar o gênio humano a elaborar um jogo em que, com a simplicidade dos hexagramas do I Ching, se chega a conjugar as mais altas conquistas da arte e do saber com apenas algumas contas de vidro. O jogo de avelórios é ambos: a excelência humana e a razão de Castália existir. A casta da Elite, como é chamada, não poderia ver justificada sua funcionalidade social, política e econômica, a não ser pela existência e reverência ao jogo – obra-prima reconhecida por todos, há que se notar. Na imagem de Hesse, mesmo os homens entregues à mundanidade de seu viver reconhecem, não sem alguma distância irônica, o valor e a necessária condição social de uma cidade de Castas. Como excelência humana o jogo e a cidade se apresentam aos seus praticantes, embora aos mundanos não permaneça, em relação a eles, senão uma distância que de reverente acaba com o tempo desgastada em indiferença.

O tempo realmente desgasta qualquer excelência e sua razão de ser, se estas não forem perseguidas com diligente aproximação. Há que se aproximar de Castália, da ordem e da harmonia, para escapar aos influxos dispersantes e alienantes da vida mundana multiforme. É o que revela a personagem de Designori – amigo-rival de José Servo, a figura biografada na obra de Hesse. Mas a verdadeira vida narrada aqui não diz respeito a Servo, a Designori ou ao amigo de Servo, Tegularius. A obra narra a vida do espírito, que só não é grafado com a primeira letra em maiúscula para que não confundamos a vida narrada com aquela imaginada por Hegel. Não se trata no livro de Hesse de recontar certa biografia de uma entidade supra-material, transposta ao campo da história por Marx, desmistificada em além-homem por Nietzsche. Em Hesse, entra em jogo as concepções mais tradicionais acerca da vida dedicada ao imaterial, de modo a formar em nós um vislumbre daquilo que comove por séculos santos e sábios.

Com o tempo, seguimos a sua narrativa e vamos nos dando conta de que a força espiritual invade a existência silenciosamente, como a existência silente de Castália parece mesmo ilustrar face ao mundano. Ordem e harmonia exalam dessa cidade de castas, e a repulsa que sentia Designori em sua juventude volta-se, na maturidade, como uma angústia, um desejo de entendimento. Porque ainda que as fórmulas e formas solidificadas pela tradição nos pareçam alienantes e castradoras, a nós jovens que não queremos mais que conquistar o mundo pelo ímpeto de nossa vulgaridade tida como genial e excelente, percebemos com o tempo que esse ímpeto, desgastando-se face à realidade nua e crua, tende a voltar-se ao que rejeitou por revolta, a procurar-se ali mesmo onde achava não poder se encontrar, e no fim acabar suspirando aliviado por haver algo assim como a tradição humana. A ordem e a harmonia, assuntos envelhecidos para nós outros, modernos alienados em lutas de classe e niilismo, será sempre o fundamento do caminho do presente para o eterno. É questão de tempo que se venha a percebê-lo.

Não posso deixar de perceber que o fluxo da narrativa ilustra a finalidade essencial do biografado. O jogo de avelórios, como personagem principal do romance-ensaio de Hesse, é a imagem retumbante da vida do espírito lançada em seu lugar no mundo: um jogo, religioso e devocional a quem pratica, espirituoso e não de todo inteligível a quem o admira de longe. As vidas de Servo e de Designori no fundo só são inteligíveis em seus papeis sociais e em seu sentido de vida face ao jogo. E não se trata de mero artifício as ditas contas de vidro. No debate travado por ambos nos capítulos finais, fica clara a posição de cada um face à tradição encarnada pela prática e manutenção do jogo, por seu rito e mito. Designori, mudano atraído em definitivo pelo mundo que sempre lhe parecera mais colorido que Castália, não fez senão o movimento pouco perceptível em quem se aventura pelas luxúrias da vida: encara o peso de ter rejeitado o fundamento espiritual de sua existência e não procura outra forma de resgatar-se a não ser em nova aproximação com a cidade de castas. A José Servo, porém, as frutíferas e de certo providenciais retiradas que fez ao mundo durante sua prática devocional à Castália mostraram-se, em meio ao surpreendente desfecho de sua biografia, a intuição necessária para se perceber que toda vida dedicada ao espírito demanda um necessário reconhecimento do material: ou seja, que a mera reclusão junto à intelectualidade não seria possível sem que a pólis lhe oferecesse essa possibilidade: no fundo, a lição que Servo nos dá, com um nome que reverbera toda a sua significação, é a de que não se pode chegar a ser senhor de uma vida espiritual sem o sê-lo em servidão quanto à vida material que lhe dá existência, e que para ser senhor sobre as exigências da matéria é preciso sê-lo em servidão ao espírito. Esta dialética da vida humana, longe de se encerrar em uma síntese hegeliana ou marxista, parece sustentar o peso da tragicidade nietzschiana da antinomia, da luta dos opostos à maneira de Heráclito, oferecendo ao fim uma saída que é apenas uma entrada na existência mesma do conflito.

José Servo, o senhor do jogo de avelórios, atinge em vida a mitificação de sua jornada em busca da sustentação do conflito com a mesma simplicidade pela qual se deixou conduzir nas experiências que o iniciaram à maior de todas as dificuldades de um verdadeiro mestre intelectual e espiritual: a de reconhecer a fragilidade de sua condição social. Nem todos chegam a ser enviados à Castália, nem todos chegam a permanecer-lhe. A via intelectual e espiritual é uma travessia de poucos, bem poucos. Uma fragilidade que parece ter algo a ver com as denúncias que já Platão havia feito em sua República, à sombra da morte injusta de seu mestre Sócrates, acerca da vida perigosa do amante da verdade, uma provável vítima da violência bárbara da massa de ignorantes. Aristóteles dizia ser a filosofia algo realizável apenas quando as necessidades materiais da existência tinham sido supridas, e não é difícil perceber por essas indicações de que maneira a via espiritual depende da sua contraparte material.

A ameaça de Castália, sentida por Servo como em um lampejo fulgurante daqueles em que se chega a ver uma verdade, é ainda e sempre a condição fragilizada do homem entreposto eternamente entre a imersão na animalidade e a elevação ao vislumbre do espírito. Mas se esta é sua condição individual inevitável, a situação social de perigo pela ignorância geral lhe condena duplamente, quer seja pela impotência em face de qualquer tentativa de que a humanidade como um todo se volte ao seu princípio espiritual, quer seja pela certeza de se ver lançado a uma preparação para a morte, como defende Sócrates pouco antes de morrer condenado pela ignorância geral. E não se pode ignorar o perigo que a tradição do espírito enfrenta, em qualquer tempo histórico. A brilhante metáfora de Hesse nos deixa ver que a vilania do apelo social de certas ideologias que se voltam contra a tradição tem sua mácula iniciada em cada indivíduo que a si mesmo se fez refém da revolta contra aquilo mesmo que lhe fez ser o que é. A consciência de Designori mostrou-lhe o erro. A consciência de Servo também. No entanto, coube ao mestre do jogo o perigo maior: abrir mão do conforto espiritual da posição mais alta em uma sociedade de castas para aventurar-se a mostrar, a um único jovem mundano que seja, o valor e a necessidade da vida do espírito. Todos terão que realizar a mesma escolha algum dia. Hesse convidou-nos a fazer a sua. Faço a minha ao esquecer Marx, sem deixar de lembrar Nietzsche. Escolho a consciência do erro.

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