Por que estas pulsões ocêanicas?

Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?

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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.

sábado, 1 de novembro de 2008

O menino e a árvore

Sabe, leitor querido, quando a gente deseja fugir do sol porque o castigo que ele nos impõe nesse verão é terrível e desgastante? – nesse momento eu vejo como é agradável estar abrigado sob uma árvore. Aqui debaixo corre um vento gostoso, uma brisa suave, brisa fresca do vento da tarde, mas sem o calor insuportável desse verão terrível. Aqui debaixo eu posso descansar da minha longa caminhada até a cidade, posso desligar a minha cabeça das preocupações com a minha irmãzinha. Ela está muito doente, e por isso tenho de ir a cidade, buscar alguns remédios para ela – Mas parar algum tempo sob essa árvore para descansar não fará mal algum.
O caule da árvore em que encostei é enorme, muito mesmo, parece aquelas árvores antigas, mais velhas que minha bisavó, já tão mutilada pela idade avançada. Essa aqui é tão velha quanto minha bisavó, pelo menos parece ser. E quantas folhas ela sustenta nos muitos galhos que ela tem! É por isso que a luz e o calor do sol não me atingem aqui debaixo.
Sinto minha boca secar. Onde vou conseguir água agora, nessa estrada deserta? O sítio mais próximo é quase duas horas daqui. Acho que eu deveria continuar a caminhada até a cidade, senão não chegarei a tempo de levar o remédio para minha irmãzinha tomar antes de anoitecer. Mas essa árvore é tão agradável! Ela é até muito bonita. – A senhora é muito bonita, dona Árvore. Ela finge que não me ouve. Mas árvore não tem ouvido. Ela nem ouviu o que eu falei mesmo. Eu posso falar pra ela qualquer coisa, e ela nem poderá me ouvir.
– É, dona Árvore, as coisas não vão indo muito bem, sabe. Minha irmãzinha ta doente, papai ta querendo sair de casa: disse que não agüenta mais a mamãe reclamando no ouvido dele o dia todo, todo o dia. E mamãe, coitada, ta sustentando a família só pela graça de Deus mesmo, é o que ela diz. Mas eu acho que Deus não gosta muito dela não. Acho que ele não gosta da gente, da nossa família toda. É, dona Árvore, acho que ele não gosta nem um pouquinho da gente.
Engraçado que a bonita da árvore não podia me ouvir, mas quando eu falava alguma coisa de Deus, ela parecia se mexer, parecia que ficava incomodada. Ora, é só impressão minha – Oh moleque, é o vento, diria o meu pai. Ele gostava de dizer que a gente não pode acreditar em tudo que vê. Na escola, a professora já tinha falado isso também, ela falou que o sol não girava em torno da terra, era a terra que girava, junto com alguns planetas, ao redor do sol. É muito interessante isso, porque eu pensava que não, que era o contrário, como a gente pensa quando não conhece as coisas. Mas tem muita coisa que a gente vê e que também não conhece. A árvore balançando agora – meu pai disse que é o vento, ele falou que a ciência estuda essas coisas. Mas não podia ser Deus? Como a gente sabe que é o vento? E mesmo assim, não podia o vento ser um sopro de Deus? Minha mãe gostava muito de falar de Deus pra mim. Ela dizia que a gente sem Deus não é nada. Mas e Deus, seria alguma coisa sem a gente também?
Eu não gosto de ficar pensando nessas coisas. Mamãe disse que se a gente duvidar vai direto pro inferno, e lá tem muito fogo, faz um calor dos diabos! E eu não gosto de calor e de fogo, e de sol, por isso é que eu to aqui debaixo dessa árvore, tentando fugir desse calor. – Mas a senhora não pode fugir do sol hein, dona Árvore! A senhora tem que ficar parada aqui todos os dias, todas as noites, sem dar nem um passinho pra esquerda ou pra direita. Eu não conseguiria ficar aqui durante toda a minha vida. É muito tempo, dona Árvore! Eu não ia poder brincar com os meus amigos, correr no campo, descer a ladeira de patins. É muito chato ficar aqui parado pra sempre! Mas é bom porque eu posso passar aqui sempre, e sentar debaixo da senhora, e descansar um pouquinho até chegar à cidade. Se a senhora não estivesse parada eu não poderia ficar aqui parado também, e se eu voltasse amanhã também não poderia sentar aqui porque talvez a senhora estivesse em outro lugar, talvez no campo correndo também, ou descendo a ladeira. Que bom que árvores não podem descer a ladeira!
A minha irmãzinha pegou um resfriado danado, ela ainda ta de cama e com muita febre, vai fazer já três dias. Sei que com o remédio ela vai melhorar. Eu já melhorei uma vez, quando eu tinha uns dois anos e era um ano mais novo que minha irmãzinha. Eu estava com muita tosse e febre, aí tomei o remédio e pronto! Passou tudo no outro dia. Como esses remédios são bons pra gente! A gente podia morrer sem eles... – A senhora não tem como tomar remédio, não é dona Árvore? Que pena. Mas deve ser muito difícil a senhora pegar um resfriado ou ficar com febre, não é? Deve ser sim.
Já pensei na morte algumas vezes. Não gosto da morte. Ela parece vazia, escura – um nada que me deixa angustiado. Por isso eu gosto da vida, ela tem tanta variedade de beleza, tantas formas e espaços – isso me diverte, gosto da diversão que o diverso me causa. Mas a morte... Que pavor! Tudo tão vazio, tão silencioso, tão... sem vida! Eu não gosto de pensar nisso, não sei, parece que me atemoriza não poder mais abrir os olhos, não mais falar, ouvir e tocar ninguém. Eu sentiria muita falta de poder andar, correr no campo, descer a ladeira de patins. Se eu morresse, eu seria um jovem muito triste porque eu não existiria mais. É muito ruim não existir mais. – A senhora eu sei que existe, dona Árvore. Sei que a senhora está aí, quieta, calada, sem poder me ouvir, mas eu sei que a senhora existe, porque é a senhora que gerou essas folhas que cobrem a luz do sol. E a senhora está sorrindo por dentro porque está viva, porque pode viver, gerar folhas, sentir o vento, sentir minhas costas encostadas na senhora. É bom quando a gente sente que outra pessoa existe.
Eu to gostando de uma menina lá do colégio. Ela é muito bonita. – É até mais bonita que a senhora, dona Árvore. Vê o quanto eu a acho bonita? Pois é, ela me deu um beijo na semana passada, ficou a marca do batom rosa que ela usa, ela é mais velha, mas eu gosto dela. O nome dela é Juliana. Nome bonito o dela... Juliana. Se eu tiver uma filha, mesmo se for com ela, vai se chamar Juliana. Ela é a primeira garota de quem eu gosto de verdade. As outras são muito esquisitas, umas tem uns cabelos feios, outras uns olhos esquisitos, umas mãos magrelas, mas Juliana não. Ela parece uma modelo de tão bonita! Eu queria muito me casar com ela, mas não sei se ela vai esperar eu conseguir um trabalho e poder sustentar nós dois. A situação ta difícil pra gente arrumar um trabalho bom. Meu irmão mais velho até já terminou a faculdade, mas ele só conseguiu trabalho numa loja de computador. – Bom é ser árvore, nem precisa trabalhar, come e dorme e vive sem precisar trabalhar. Mas a gente... a gente tem que ralar pra conseguir alguma coisa boa. Tomara que a Juliana me espere pra gente se casar. Senão vou ter que me virar sozinho mesmo.
O sol parece que ta mais fraco agora. Deixa eu ir embora.
Eu não vou ter que me virar sozinho. Eu tenho a minha mãe, e a minha irmãzinha. Elas me amam. Se a Juliana não me quiser, eu fico com elas. – O ruim é que árvore não pode se apaixonar, não é mesmo dona Árvore? Eu não queria ser árvore não, sem amor não tem graça. A vida fica mais bonita quando a gente sabe que existe alguém que ama a gente, que brinca com a gente, que vive com a gente – e que morre com a gente. Se a senhora soubesse o que é o amor, dona Árvore, a senhora iria com certeza querer ser igual a gente.

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