A oposição entre dois lados da alma, entre duas naturezas, e de que maneira o homem é capaz de unificá-las em torno de si mesmo, pode ser dito um tema predominante da literatura de Hesse, e em Demian ele nos oferta mais uma penetrante percepção dessa dicotomia demasiadamente humana. O incômodo que se sente ao perceber esta dicotomia, a luta interna entre ceder à luz ou às trevas, entre dar ouvidos à carne ou ao espírito, e mais ainda, em se perceber a si mesmo como alguém ausente do meio social, como um ser que já não pertence ao coletivo como os demais, mas que fora, por assim dizer, desperto, tomou-se de consciência da fragilidade das relações e da futilidade dos burburinhos sociais, naufragando-se em seu próprio mundo interior, navegando por suas vontades e incômodos, por seus pensamentos e suspiros. Assim é o mundo de Hesse. A resposta encontrada pelo jovem Sinclair, no entanto, não podia dar-se em si sem antes passar pelo outro. E com isso Hesse nos lança fundo na conflituosa experiência de estar consigo mesmo sem poder desprezar os outros de todo. Há uma inevitável implicação do social sobre o íntimo, e dessa vem surgir aquilo que a experiência interna nos mostrará sobre o mundo. A dialética entre o interno e o externo é a essência da consciência angustiada pela existência, que encontra um suspiro de felicidade no pensamento, no vago vislumbre de uma realidade que o transcende. O livro do escritor alemão é pois esse narrar da dialética da existência. Interessante que em uma edição de bolso tenham posto Demian ao lado de Sidarta. Ambos os livros se completam, na vinculação entre oriente e ocidente que induz todo homem perplexo com a realidade a buscar o princípio de transcendência que a compõem e constitui, e sem o qual nós mesmos nada seremos.
Ou como mostrar a alma quando não se pode olhá-la no espelho, embora ela esteja ali, nos observando...
Por que estas pulsões ocêanicas?
Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?
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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.
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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.
segunda-feira, 29 de abril de 2013
Hesse - Demian
A oposição entre dois lados da alma, entre duas naturezas, e de que maneira o homem é capaz de unificá-las em torno de si mesmo, pode ser dito um tema predominante da literatura de Hesse, e em Demian ele nos oferta mais uma penetrante percepção dessa dicotomia demasiadamente humana. O incômodo que se sente ao perceber esta dicotomia, a luta interna entre ceder à luz ou às trevas, entre dar ouvidos à carne ou ao espírito, e mais ainda, em se perceber a si mesmo como alguém ausente do meio social, como um ser que já não pertence ao coletivo como os demais, mas que fora, por assim dizer, desperto, tomou-se de consciência da fragilidade das relações e da futilidade dos burburinhos sociais, naufragando-se em seu próprio mundo interior, navegando por suas vontades e incômodos, por seus pensamentos e suspiros. Assim é o mundo de Hesse. A resposta encontrada pelo jovem Sinclair, no entanto, não podia dar-se em si sem antes passar pelo outro. E com isso Hesse nos lança fundo na conflituosa experiência de estar consigo mesmo sem poder desprezar os outros de todo. Há uma inevitável implicação do social sobre o íntimo, e dessa vem surgir aquilo que a experiência interna nos mostrará sobre o mundo. A dialética entre o interno e o externo é a essência da consciência angustiada pela existência, que encontra um suspiro de felicidade no pensamento, no vago vislumbre de uma realidade que o transcende. O livro do escritor alemão é pois esse narrar da dialética da existência. Interessante que em uma edição de bolso tenham posto Demian ao lado de Sidarta. Ambos os livros se completam, na vinculação entre oriente e ocidente que induz todo homem perplexo com a realidade a buscar o princípio de transcendência que a compõem e constitui, e sem o qual nós mesmos nada seremos.
segunda-feira, 22 de abril de 2013
Sheherazade e as mil e uma noites - de funk!
Tudo bem que as reportagens na mídia brasileira atual sejam padronizadas, e mais que isso, sejam induzidas com fins ideológicos. Tudo bem que muito antes que informar, a mídia atual, e a brasileira mais que todas, destina-se a (in)formar. Mas caberia perguntar: também não há indução ideológica nas universidades? O recente 'debate' na internet entre a jornalista Rachel Sheherazade e a estudante de mestrado Mariana (popozuda?) Gomes - digo 'debate' apenas para meus próprios fins 'ideológicos' - trouxe a discussão sobre o papel do funk na cultura brasileira, o feminismo a ele ligado e, por tabela, as relações e influências inegáveis de ambos sobre as pobres mentes tupiniquins. Isso porque em meio a um debate verborrágico, em que as palavras são deslocadas de seus contextos, a coisa vira mesmo um baile em que muito pouco ou quase nada se chega a saber se não se fugir de volta à realidade.
No que me caberia alguma posição enquanto estudante de mestrado, não em Cultura e Territorialidades na UFF, (in)felizmente, devo dizer que a cultura é sim hierarquizada, e não poderia ser diferente, dada a possibilidade mesma de ela ser conceituada. Se tudo fosse cultura ou cultural em uma sociedade, não levaria um segundo para alguém notar a ausência completa e instantânea da mesma. A distinção entre coisas é característica inalienável dos sentidos naturais, e no homem esse aspecto abre espaço ao do apreço, ao da valoração. Distinguir coisas para o homem sempre será uma distinção entre bom e ruim, belo e feio, justo e injusto, ainda que se diga o contrário. Distinguir o cultural do não cultural é algo que mesmo nossa estudante de mestrado sabe muito bem fazer, já que cobra conhecimento. E ao cobrar conhecimento da jornalista está demonstrando, ora vejam, a existência de uma hierarquia quanto ao conhecimento, ou antes, entre aqueles que sabem e os que não sabem. Para a senhorita popozuda, como para todo homem de senso, quem conhece algo deve ser melhor no falar sobre algo que aquele que nada sabe.
Pois bem, se a palavra 'cultura' hoje se vê tão desgastada que já não se percebe com clareza as distinções que a diferenciam do que não é cultural, tais problemas de visão, no entanto, não deveriam atingir o espaço da universidade. É papel da universidade a investigação e o ensino voltados para o conhecimento, e o conhecimento acerca do que não se conhece começa sempre pelo que já é conhecido. Este conhecido, cuja função é nortear a investigação, não é assumido na escala hierárquica do conhecimento como um 'clássico'? Se a estudante popozuda teve de ler quatro livros (sic!) para ingresso no mestrado, significa que aos coordenadores do programa tais livros são 'clássicos' para a investigação sobre a cultura - claro, segundo sua própria ideia de cultura. Não seria então muito mais legítimo defender a falta de hierarquia em relação ao conhecimento? Para que ler tais livros, deveria perguntar a estudante, se podemos aprender igualmente com o batidão? A 'desonestidade intelectual' encontra-se exatamente no igualitarismo cultural, que se não tenta rebaixar a alta cultura, intenta elevar o apelo sexual mais imediato ao cume da dignidade cultural, ainda que os dois movimentos acabem dando no mesmo.
Igualar Saramago e Valesca é questionar, no fim das contas, por que é que ainda temos faculdades. Para que, se tudo possui o mesmo valor cultural? Pode-se obter a mesma experiência humana lendo Ensaio sobre a Cegueira e ouvindo Tati quebra-barraco! Bem, a continuar assim, talvez a universidade realmente já não sirva mais para nada. Talvez já não haja mais necessidade de perder meses e meses lendo Machado ou Proust. Talvez já não haja diferença entre livros e enfeites de prateleira. Será neste instante, certamente, que o Brasil descerá de uma vez por todas pelo ralo. E se depender da atual cultura brasileira, sobretudo aquela defendida pela nossa camada dita intelectual, o buraco será ainda mais fundo.
A Rachel, pelo excelente trabalho de voz no deserto, ainda que soe às vezes histérica.
O link para as fontes do 'debate': A reportagem e A resposta
domingo, 21 de abril de 2013
As origens das formas religiosas indo-européias
Do que se pode saber sobre as formas religiosas das comunidades indo-européias tem-se que, basicamente, sua estrutura é pastoril, embora conhecendo a agricultura, cultivando bovinos e cavalos, além de se organizarem tendo em vista sobretudo a posição bélica e conquistadora. Isso se perceber pelas palavras comuns a esses povos, de forte incidência da sua economia nômade e militar. E um dos traços marcantes da cultura e dos processos religiosos indo-europeus é justamente a simbiose, a assimilação e revaloração das culturas e dos processos religiosos das cidades e tribos conquistadas.
Como exemplo, pode-se perceber o processo simbiótico pelo qual provavelmente passaram os povos indo-iranianos. Chamando suas tribos com um nome que significava 'nobre', 'homem nobre' (ária, daí religião ariana e povos arianos), os arianos não demoraram a mitologizar tanto seus adversários, tomados como 'demônios' ou 'feiticeiros', como suas batalhas com estes povos. A ocupação de um novo território dava-se ao erguer um altar de fogo dedicado a Agni, que simbolizava o ritual da Criação. Desse modo, o território dominado, em razão do rito, transformava-se do 'caos' em 'cosmo'.
Outro aspecto fundamental das sociedades indo-européias está na sua estrutura tripartida. Provável reinterpretação das concepções acerca do deus do Céu - Criador, Soberano e Pai - as formas religiosas e sociais dessas comunidades se distinguiam em três classes principais: a dos sacerdotes/juristas, a dos guerreiros e a do homem comum/produtor. A estas três classes correspondia uma tripartição funcional das divindades: os deuses soberanos e legisladores, os guerreiros e protetores e as divindades da fecundidade e da prosperidade, agrícola e pastoril. Em comum à tal tripartição, no entanto, estava a presença do deus do Céu, ou na verdade, do Deus ele mesmo (posto que o termo indo-europeu para 'deus' é o mesmo usado para designar o céu, 'deiwos'; lat. deus, sânsc. devas, iran. div, lituano diewas). Pode-se imaginar que o céu estivesse desde sempre atrelado à concepção do homem primevo acerca do divino, conferindo-lhe aquelas posteriores propriedades tripartidas de Soberano, Criador e Pai.
quarta-feira, 17 de abril de 2013
Hesse - Sidarta
Desde o artista jovem de Joyce ou meu encontro arrebatador com Nietzsche, não havia me identificado de um modo tão inexplicável com uma personagem como aconteceu no caso de Sidarta, da obra monumental de Hesse. O desejo de dar vazão à própria voz, ouvida apenas pelo incômodo interno dos momentos mais angustiosos da existência, é descrito por Hesse com uma finura de sentimento e uma força imaginativa que para mim era impossível não quedar paralisado, absorto, maravilhado. Minha alma estava ali. Era como se as buscas incessantes do protagonista retratassem, do outro lado do mundo, as incessantes travessias que fiz, não de um lugar a outro, mas aqui dentro, em meu ser, num transitar que pouco tem de visível a qualquer um que estivesse ao meu lado. O mundo interno borbulha, enquanto a vida externa segue por vezes pacata, cotidiana, quase sempre monótona. O mergulho interno, vertical, das profundezas até a transcendência, foi e continua sendo meu roteiro de viagens, de descobertas, de experiências. Os percalços de Sidarta em busca do conhecimento, em busca de respostas para sua alma, é a busca que me pervade o ser, o dever ser, o devir. Seu envelhecer na simplicidade da vida realizou, diria mesmo, os influxos teleológicos que me tomam sem deles ter plena consciência. Até agora. Em Sidarta pude vê-los, ver-me o fim, de algum modo premonitório, profético. A sabedoria oriental, ocidental, natural, a reunião do que é humano em poucas palavras, tudo me pareceu deveras divino. O encontro com Hesse, depois ainda em Lobo da Estepe, foi a mais grata surpresa que tive neste início de ano. Uma surpreendente visão de mim mesmo: não mais como um tipo louco ou extravagante, como se costuma dizer, tipo que sequer aparece na literatura machadiana, nossa melhor, e que por isso mesmo foge à possibilidade de compreensão do homem brasileiro. O tipo do homem voltado às questões mais significativas da existência humana é quase sempre incompreendido pelos demais - para tanto, Hesse nos oferece, com extrema habilidade, as grandezas e misérias de uma vida como essa. Uma vida, por assim dizer, filosófica.
domingo, 7 de abril de 2013
Diálogos com a physis VI
- E então, o que tem feito?
- Estudado.
- Ainda não se formou?
- Não é isso, não estudo para me formar...
- Então o quê?
- Então é isso, estudo.
- Pra quê, homem? Quem estuda estuda pra se alfabetizar, não é assim, ou pra passar de ano, ou então pra arrumar trabalho, não é? Pois então, meu velho, pra que estuda?
- Para mim.
- Pra você? Ora não me diga! Você, sempre irônico.
- Não é ironia...
- Mas vai, diz aí, qual é a garota agora? É bonita a guria?
- Quem?
- A mulher que te faz estudar?
- Mas não tem mulher nenhuma!
- Ah, vai lá, não se esconde do teu amigo não, vai! Quem é a rapariga? É gostosa?
- Mas que coisa! Já disse que não tem mulher nenhuma!
- Então o quê?
- O que o quê?
- Pra que estuda?
- Ora essa, não falei: para mim mesmo. Não se lê poesia para nada senão para nós mesmos.
- O que você faz com isso?
- Bem, se você tivesse lido talvez não me fizesse essa pergunta. Mas tudo bem, eu explico: há dois tipos de vida, aquela na qual o homem faz questão de se igualar aos demais, uma vida por assim dizer horizontal, e aquela vida na qual o homem se aprofunda naquilo que o incomoda, se aprofunda na sua existência e nas perguntas que traz dentro de si, uma vida por assim dizer vertical. Entende?
- Sim, como a cruz. Mas o que tem a religião com isso?
- Mas quem falou em religião? Estou falando de nós, do modo como a gente escolhe levar a nossa vida. E a poesia é um tipo de experiência que nos faz levar uma vida vertical.
- Ta vendo, eu sabia!
- O que há?
- Eu sabia que essa coisa de estudo ia acabar te deixando pirado, meu velho! Sai pra lá que isso pega!
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