O fim de Quaresma é triste porque a morte
é derradeira para um homem de estudos em terras onde estudar não passa de
excentricidade de visionário e de pedantismo de doutor sem diploma. Ter livros
e não ter títulos é incongruente para a opinião da média de nossos brasileiros,
encerrados que são na mediocridade de sua busca pelo prazer físico e por aquele
sempre presente descaso com aquilo que diz respeito à alma, à cultura e à
virtude, que torna a vida humana digna de ser vivida. Por aqui a mais alta
dignidade é ser médico ou jurista, militar ou militante, burocrata de um Estado
corrompido em seu fundamento, porque dado à imposição de autoridade e, por
isso, à falta representação do país em seus governantes. A legislação e a
governança chegaram prontas, encaixotadas na pior das suas limitações – se
chega a vislumbrar no Brasil de Barreto, talvez ainda hoje, a estratificação da
sociedade em apenas duas classes: a classe de quem sobrevive e a de quem dá a
sobreviver. No fundo, as mazelas por não se preocuparem senão com as coisas
mais transitórias impediam que a vida do espírito e da cultura, o mais elevado
anseio das formas de convívio humano, acabassem preteridas exatamente como
excentricidades de visionário e como pedantismos de doutor sem diploma.
Quaresma é visionário e pedante segundo a
mediocridade tupiniquim. Seu amor por aquilo que o Brasil foi, é e pode vir a
ser é entendido como esforço de desocupado, coisa de quem nada tem que fazer de
mais importante. A primeira parte do livro de Barreto é uma descrição
precisa desse choque de valores que o homem de estudo acaba por assumir, face
ao grupo em que vive, para fazer valer a verdade. Quaresma é filósofo, no mesmo
sentido em que Sócrates o foi. Sua indignação contra a falta de memória popular
e social, falta de recurso à tradição e à história que lhes constitui, está no
centro das críticas mais duras de Barreto ao modo de vida brasileiro. Contra
esse sinal de fraqueza, Quaresma empreende uma verdadeira epopeia cômica:
sua ideia fixa de tornar o Brasil mais brasileiro parte dos seus estudos
e da descoberta da música de violão como a mais própria à alma nacional,
até a intempérie de sugerir o tupi-guarani como língua oficial do país.
Encerrado como louco, vai do sanatório ao Sossego, iniciar uma nova
tentativa de trazer a essas terras algum valor.
E de fato descobre, ao comprar um sítio no
interior do Rio de Janeiro, que a terra brasileira é de extremo valor: aquilo
que aqui se planta, dá. Seu problema não é a terra, mas os homens que a
administram. Quaresma logo descobre que também a vida no campo por aqui está
desprovida de sossego. Seus planos estratégicos de alavancar a
agricultura do país, por meio de um estudo rigoroso da fauna e da flora, mas
também dos mecanismos do labor e os percalços da burocracia, tornam-se um
manuscrito que Quaresma, já desiludido com a vida sossegada do campo, decide
entregar pessoalmente ao Marechal Floriano. De volta à cidade, alista-se nas
forças aliadas contra os revoltosos, a fim de dar vazão, por outro meio, a
força do ideal que movimento o verdadeiro patriota.
E temos aqui o que talvez seja o traço
histórico mais interessante do livro de Barreto. A longa descrição do Marechal
Floriano, um sujeito ausente de qualidades intelectuais, mas de uma tibieza
de ânimo e preguiça descomunal entre os grandes governantes e
ditadores, nos concede uma impactante apresentação do caráter ao mesmo tempo paternal
e cruel desse homem-talvez, o líder maior da República nascente,
e o seu contraste com aquilo que se deveria esperar de um líder à altura. Sua
mediocridade, proporcional ao nível que ocupa mas paralela à do restante da
população, deixa a Quaresma a incômoda suspeita de que não parece valer tanto a
pena assim o sacrifício que a nação lhe tributa. Agora como major de fato, sua
ânsia em compreender os modos da guerra o move novamente aos livros. Mas de que
lhe valeram anos perdidos em aprendizado, em conhecer a história para melhor
agir com relação ao futuro, aqui em meio aos que no máximo só pensam no que
irão comer ou beber no dia de amanhã? Sua loucura viril termina em angustiosa
desolação. Desacreditado do futuro, não vê mais do que perda de tempo de seu
passado. O presente agora não poderia ser mais niilista. Vê-se injustamente
condenado pelo seu manifesto de repúdia à miséria moral que presenciara em seu
cargo. A miséria dos medíocres, ocupados com os louvores pela vitória do
Marechal, não lhes permitia ver a real grandeza do homem. Seu fiel amigo, o
artista Coração dos Outros, nada pode fazer. A loucura dos míseros vencera a
dos sãos.
Ismênia é talvez a contraparte feminina de
Quaresma, porém entregue não aos ideias mais elevados do espírito e da cultura,
mas ao casamento – já ausente de sua ligação com o amor, com sentimentos ou
sentidos: para Ismênia, o casamento se impunha como uma ideia, uma pura
ideia, que independe do noivo que demora mas que a enlouquece quando este
já não lhe pode concretizá-la. Ao abandoná-la o noivo, a ideia fixa que movia a
frágil mente da jovem dada ao casamento se lhe transforma em loucura, aquela
mesma de não poder ver na realidade a esperança que domina o cérebro. Em
processo de falecimento, determina que sua morte se dê vestida de noiva – e
assim segue ao túmulo, para o desespero dos pais. Em uma das frases mais belas
da literatura, Barreto resume o fim trágico da moça: “e lá ia aquela moça
por ali afora para o buraco escuro, para o fim, sem deixar na vida um traço
mais fundo de sua pessoa, de seus sentimentos, de sua alma!”. “Ela ia
para a cova com a insignificância, com a inocência e a falta de acento próprio
que tinha tido em vida”. Mais trágico fim que de Quaresma, porque nem a sua
ideia fixa constantemente pertencente à mediocridade social teve os ares de
grandeza que podem ser vistos no major. No Brasil, nem mesmo a forte
determinação em alcançar um matrimônio que seja tem qualquer tipo de boa
realização. Se a terra aqui, dizia Quaresma, é terra boa, em que plantando tudo
dá, não acho que podemos dizer, com Barreto, o mesmo em relação a gente que
vive por essas bandas.
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