A
avalanche dos contos e das histórias sobre o fim catastrófico da civilização
ocidental, como a conhecemos hoje, tem servido como tema para romances e
produções cinematográficas as mais diversas – e não são poucas as tentativas de
se imaginar, após o fim, uma nova forma de civilização, sempre mais organizada,
mais coesa, mais avançada; sempre menos complexa, menos profunda, menos humana.
O tom de catástrofe face àquilo que o homem alcançou é o estopim para que se
conceba este mesmo homem na catástrofe da sua desumanização, como uma certa pena
pelos seus excessos.
Dessas
tentativas, cito alguns projetos antigos, como A Ilha, Aeon Flux e
Equilibrium, ou os mais recentes, como Divergente, Jogos Vorazes e
Maze Runner, por exemplo. É igualmente enquanto um projeto sobre um modo de
vida pós-apocalíptico que O doador de memórias se apresenta ao leitor
(sem nos esquecermos também de sua adaptação recente ao cinema), procurando
oferecer outras formas de enxergar a convivência humana e o que seria a melhor
forma de realizar sua necessidade de ordem.
O
doador de memórias é o típico bestseller do ramo, conjugando os elementos
fundamentais de uma trama desse nível, se não fosse pela falta de algo que pôde
ter frustrado muitos de seus leitores: as cenas de ação. Para mim contudo, este
é o seu diferencial. Seus fudamentos, ao se basearem mais no enredo que no
suspense e na atividade das personagens (o que não acontece com a adaptação
para o cinema), convida o leitor a pensar junto, a elaborar aos poucos sob que condições
poderia haver uma sociedade avançada como essa em que Jonas irá se descobrir.
A
comunidade em que Jonas está é o que Popper chamou de sociedade fechada. Controlada por regras claramente expressas e
rigidamente exigidas, a cidade se pauta na divisão das funções regida pela
atribuição por naturalidade ou familiaridade, estipuladas a critério de uma
casta governante, cuja missão é zelar pela ordem no cumprimento das leis e na
disposição dos cidadãos segundo o cargo que lhes compete. Numa cidade onde a
cordialidade se materializa nos bons modos e no evitar a descortesia, onde a
divisão diária das funções é a essência lapidar do modo de viver e onde a
aspiração mais importante de uma existência está em chegar, quando idoso e
incapaz de produzir, a ser Dispensado da comunidade e mandado para Alhures (um
lugar que seria fora da comunidade, desconhecido mas desejado por todos, e que
depois Jonas descobrirá ser uma “pena de morte”), não se poderia esperar haverem
decisões, escolhas ou dilemas. Não há escolhas onde não há alternativas – e uma
cidade privada de cores, de memórias e de sofrimento é, ao fim, um paraíso
totalitarista.
Soa
um tanto familiar à proposta tomada por Platão na República a forma com
que se dispõem as pessoas pela comunidade. Os núcleos familiares são formados
por pais e mães unidos a partir da orientação da casta dos Anciãos, segundo a
afinidade percebida entre ambos, e lhes são dados no máximo duas crianças para
a criação após receberem o nome ao completar um ano de idade. Mas as
semelhanças com a República param por aí. Cada novo ano é um passo para
o desenvolvimento individual e para a inserção do indivíduo na cidade. Cada
novo ano é uma etapa até à fase adulta, chegada aos Doze com a atribuição de uma
função a ser exercida. Os impulsos são extintos quase por completo: toma-se
pílulas para aliviar a dor e para evitar a sexualidade, os contatos físicos só
são permitidos no seio da família, onde se narram os sonhos pela manhã e os
sentimentos mais importantes sentidos ao longo do dia. O ensino é comum a
todos, do mesmo modo que os momentos livres. Segundo se saberá em certo momento
do livro, foi a escolha pela Mesmice que permitiu à cidade sua organização e
presteza na disposição das vidas. Foi a Mesmice que permitiu aos homens
sustentarem a convivência sem sofrimento. Pode ser que no fundo, e isso nos
leva de novo à República, uma cidade disposta dessa forma não deva senão
estar fadada à mesmice. E jamais é possível supor a existência eterna da
mesmice.
O
livro talvez gire mesmo em torno do pólo Mesmice-Sofrimento, que estará
encerrado na ausência ou na apreensão das memórias. O livro fala sobre o peso e
o papel das memórias para a vida humana. A sociedade fechada de Jonas só
se tornou possível pela isenção dos seus cidadãos em terem acesso a memórias. A
memória é entendida de duas formas:
são ao mesmo tempo tanto os fatos quanto as sensações que lhes acompanham,
porque guardamos sempre os fatos e as suas sensações. A Mesmice só é possível a
partir da restrição da memória a escassos fatos e suas sensações, fatos e
sensações que em suma não causem o desarranjo das funções, que não provoquem
dúvidas face ao cotidiano regularizado, que não levem ao perguntar e à
possibilidade de se ter que tomar uma escolha.
A
autora chega com isso quase a constatar, por metáfora, que a liberdade é
sofrimento, como Sartre e o existencialismo apregoavam, e que se pode mesmo
optar por uma vida imersa em Mesmice para livrar-se do peso das decisões. No
fundo, a liberdade é o fundamento de nossa humanidade mesmo quando se opta por
não saber e com isso se deixe levar pelo fluxo da rotina. A Mesmice é a escolha
por não ter de escolher e, com isso, sofrer consequências. Uma vida sem
escolhas é uma vida sem cor, entregue às pílulas que amenizam a dor e evitam o
prazer. A Mesmice é escolher a fuga. A memória é parte necessária da vida
humana e de sua liberdade. A memória é própria ao homem corajoso, que não teme
experimentar o mundo e as sensações que lhe seguem. É preciso ter coragem para
assumiar a liberdade, mesmo que a princípio não tenhamos escolhido obtê-la.
Jonas
fora escolhido, é verdade, e o foi por sua coragem. Escolhido para o cargo mais
honroso da comunidade, porque o cargo daquele que padece pelo coletivo, assume
a função de receber as memórias de gerações e mais gerações humanas, de fatos e
de sensações que já não existem mais, porque esquecidas ou proibidas. Jonas é
escolhido a ter liberdade, e isso em um lugar isento de escolhas é uma honra. A
decisão corajosa em se tornar um Recebedor de Memórias acaba, no fim, nascendo
de sua própria natureza. Sua atitude inquieta, curiosa e quase sempre
desconfiada o levou, como levou o Neo de Matrix, a querer respostas. Não apenas
inteligência e integridade são qualidades importantes apontadas
no jovem pelos Anciãos, mas sobretudo a coragem é o primeiro passo para se
lançar na busca de respostas. É a busca por saber que o tornará ao fim um homem
sábio. Mas, inegavelmente, a sabedoria depende da coragem. É próprio a uma natureza
inquieta ser inconformada com a Mesmice, e nessa inconformação está a condição
para a sabedoria.
A
coragem para procurar respostas produz um olhar diferente para as coisas, para
aquilo que as demais pessoas sempre veem da mesma forma. A Mesmice do olhar é a
condição do senso comum. O olhar diferente é a condição do filósofo. E aqui
voltamos novamente à República e à sua definição da natureza filosófica.
Pela coragem, alguns se darão conta de que aquilo que as pessoas tomam por ser
real no fundo é uma imagem da verdadeira realidade. A maioria dos homens se
comportam como em um espetáculo teatral, sem se darem conta de que a realidade
está para além. O filósofo é por natureza um amante do espetáculo da verdade.
Jonas não faz senão cumprir certa correspondência com o papel filosófico em sua
sociedade fechada. Esta condição do filósofo de ver além do que a
maioria vê é o último dos aspectos que lhe definem para o cargo. Ver Além é
perceber o que as coisas realmente são, além de suas aparências, além da precisão
da linguagem que enclausura a experiência no dizer, o pensar no dizer. Ter a
capacidade de Ver Além, pode-se dizer, faz de Jonas no livro de Lois Lowry o
protótipo da natureza filosófica desperta em meio à Mesmice da maioria das
pessoas, sempre satisfeitas se puderem escapar do sofrimento em troca de sua
liberdade. Cabe ao filósofo, pela capacidade de Ver Além, conservar a liberdade
humana por meio da fluência das memórias que a tornam possível, ainda que tenha
de sofrer por isso. É não é por acaso que o treinamento de Jonas e do filósofo
lhes exigem o suportar o sofrimento e a rejeição social. Jonas é escolhido para
ser um excluído.
O
Encontro com a verdade é doloroso. O filósofo na República mal consegue
ver as coisas do mundo, e ao retornar para a caverna é tido por estranho e
louco. A experiência de Jonas ao experimentar a fluência de memórias, de
sensações e frustrações, chega a provocar dor física. É quase impossível dizer
o que sente e o que passa a enxergar. As pessoas não o entenderão. É preciso
levá-las a ver. Mas isso não é possível. Seu cargo na sociedade fechada cumpre
exatamente a função de ser o único a quem é dado saber, sofrer, escolher.
Encarar a verdade e ver de fora a vida das pessoas com as quais ele
tranquilamente habitava, saber sobre o futuro que lhes espera, sobre um
presente condenado à ignorância e à ausência de escolhas, sobre um passado que
não passa de falsas memórias – é terrível a um jovem de Doze anos suportar este
fardo, como o foi para a jovem que lhe precedera, Rosemary, e como o é para o
atual Doador de Memórias. Não há escape a não ser fugir da sociedade fechada
para descobrir Alhures. O destino escolhido por Jonas, no entanto, não fora o
mesmo de Sócrates. Bem poucos são os que escolheriam para si o destino filosófico
de morrer pela filosofia. Jonas escolheu a fuga, mas ela lhe foi uma escolha
dupla pela vida, a sua e a do pequeno Gabriel. Ficamos sem saber, ao fim do
livro, se lhe chegou a ser uma escolha acertada.
São
as cenas que compõem os próximos livros da série.
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