Pois é isto que me aconteceu, acabamos tudo deste jeito.
De que jeito?
Abruptamente, como começamos.
Não me admira, vindo de você.
Pois fui capaz de admirar-me de mim mesmo.
Em que sentido?
Por terminarmos sem ter havido sentido algum...
Para terminarem?
Não, para continuarmos juntos.
Estranho...
Pois veja, não posso continuar com uma mulher com quem não sinto mais prazer.
Mas isso em tão pouco tempo!
Porque não falo de um desejo sexual por ela...
Não entendo.
Não tinha mais desejo de estar ao seu lado.
Como se ela lhe provocasse um mal-estar?
Exatamente!
Entendo o que quer dizer.
Você já sentiu a mesma coisa por alguém?
Sim, claro. Alguns homens depois de um tempo me enojavam...
Isso! Eis o que senti por ela!
E como ela se sentiu?
Nem me fale!
Diga!
Confesso que me fere ter de terminar essas relações sem um motivo aparente...
Sem um sentido...
Não havia mais sentido de continuarmos aquela relação.
Porque não havia mais sentido de estarem juntos...
Exato! E sofro por não sentir mais o desejo que me moveu a possuí-la...
E acaba por feri-la.
Que monstro que sou!
Não se desespere. É normal que aconteça.
Como normal?
O que sentiu por ela nada mais foi que desejo sexual.
Sim, um desejo impetuoso...
E que por sê-lo se desfez, como névoa.
Por que razão?
Porque seu coração não foi atingido.
Fala de amor?
Falo de torpor.
Queria ter sentido meu peito vibrar ao saber que a veria!
Não sentimos isso por todos que desejamos.
Mas é errado então desejar quem não nos atinge o peito?
Que há de errado em desejar por um instante?
E como saber que o outro também apenas lhe deseja?
Mas você se privaria do prazer de possuir o que deseja pelo outro?
E não deveria privar-me?
Quem suporia este dever senão o outro?
Mas não poderia eu também vir a ser o outro?
Mas ser o outro já não lhe mostraria a possibilidade de sofrer por isso?
E não deveria não desejar sofrer?
Mas por que supõe que o desejo não lhe faria sofrer?
E por que deveria desejar o que me faz sofrer?
Mas caso não, você não estaria se privando de certos desejos?
E não é o que deveria fazer? – Preciso saber!
Por quê?
Por que o quê?
Por que deveria fazer isso?
Não desejar o que me faz sofrer?
Isso, por que se limitar a desejar aquilo que não lhe faça sofrer?
Não estou certo em me pôr no lugar do outro?
Quanto ao seu desejo?
E como não?
Mas isso não seria um tanto impróprio?
Por que razão?
Você poderia dizer que o seu desejo sempre equivale ao desejo do outro?
Não estou parecendo claro, não?
Tem dúvida?
Esclareço então. Não posso negar que meu desejo seja tão variado quanto variados são os tipos de mulheres que se pode desejar. Meus olhos percorrem lugares e corpos, e quase sempre se detém naquele que provoca em meu corpo as sensações mais agradáveis. Vejo uma e suas pernas me provocam; outra e seus seios me instigam os sentidos; e não consigo deixar de não notar as curvas sinuosas e latentes de uma bela bunda à minha frente; e quando muito sou como que tomado de incontrolável pulsão sexual pelos gestos e olhares e tudo o que pode me excitar naquilo que ela parece com o corpo desejar sentir. De modo que me sinto terrivelmente seduzido ou por um belíssimo corpo – quando então o que desejo é prová-lo em todo o seu sabor – ou por um lascivo mistério – quando minha vontade não quer nada senão provar de todas as possibilidades que aquela criatura parece me oferecer. Contudo, deste primeiro momento poucas realmente acabam por se realizarem, já que não só depende da minha vontade, mas também da vontade alheia, para que o desejo se torne em prazer e não termine perecendo como frustração e sofrimento. E este é o primeiro ponto de onde começa uma necessária relação com o outro, da qual não se pode escapar – a não ser que eu esteja decidido a não me submeter aos critérios da vontade do outro, e resolva então procurar aquelas criaturas que me ofereceram o prazer que quero no corpo que desejo, sem me privar do instante: mas como, se o meu desejo não está em possuir a facilidade de pagar para realizá-lo, e sim no processo de conquistar o objeto de desejo para então possuí-lo? Quem paga para obter a lascividade da mulher se abstém de sofrer pela impossibilidade de ter o que deseja, mas acaba mergulhando na mais plena fatalidade de relacionar o poder que possui ao dinheiro e não a si mesmo.
Como que perdendo seu próprio valor por conferi-lo ao dinheiro.
E fazendo com que sua vontade sempre seja conduzida por esse tipo de poder, nunca tal sujeito poderá vislumbrar as reais possibilidades de desenvolver-se e cultivar-se. O homem de dinheiro corre o risco de perder seu potencial civilizador porque deixa de se importar com o cultivo de si, de sua alma – e isso tem sido minha preocupação constante: o cultivo da minha alma.
Mas poderíamos dizer que todo aquele que se relaciona com esses tipos perde sua cultura?
Tendencialmente é o que se pode concluir.
Sabe que está indo contra boa parte dos homens, não?
Importa-me saber se o que digo e o que faço é ou não coerente.
E acha que tem razão ao dizer isto dos homens de dinheiro?
Acredito que não posso elevar culturalmente uma relação como essa, mediada.
Elevar culturalmente?
Pôr em destaque, como ideais de convivência e de relacionamento humano.
Ou seja, aquilo que não eleva no homem sua humanidade?
Ou aquilo que o rebaixa à animalidade.
Então você está pondo a limitação como inerente ao desejo?
É o que inegavelmente nos ocorre quando em convivência, quando em relação com o outro.
Por isso é que não podemos nos livrar do sofrimento de não podermos ter muitas vezes o que desejamos?
E como poderíamos?
Pois isto ratifica o que eu disse antes...
Mas não totalmente.
Não vejo como não.
Discordamos exatamente no modo como tratamos o outro em nossos desejos. Se concordamos que sofrer pelo que se quer é inevitável, não entendemos do mesmo modo como este sofrimento pode nos polir e nos educar. Porque para você, o fato de haver um inevitável sofrimento na vontade, não significa que eu deveria por conta disso pensar no que posso estar causando ao outro, seja ao preteri-lo se ele se aproxima, seja negando a realização de seu prazer, seja ainda oferecendo-lhe tal realização por um instante menor que o de sua expectativa. Em todo o caso, devo fazer aquilo que desejo.
É o que digo.
Pois sendo assim, o sofrimento do outro nada significa para a nossa vontade.
De modo algum.
E então o que sobra?
Cada um fazendo aquilo que deseja, sem medo de vir a sofrer por não realizá-lo.
Mas esta diferença entre as nossas visões acerca da relação com o outro se deve justamente pela concepção de desejo da qual não partilhamos. Para você, o desejo está primeiro na propensão a se relacionar intimamente com o outro. Mas não creio que possamos resumir o desejo apenas a este ponto. Porque nada nos parece menos humano e bárbaro que o desejo tomado nele mesmo e somente naquilo que o origina. O que quero dizer – não posso condensar todo meu desejo por uma mulher em seu corpo instigante e em sua libido avassaladora e misteriosa. O problema está justamente em não se resumir a uma constante caça selvagem ao prazer as relações entre os homens. Não se pode negar que a dimensão ‘espiritual’ que constitui tudo aquilo que denominamos como humanidade se vislumbra tão somente no espírito, não no corpo.
Estou entendo o que você quer dizer...
Não tento mostrar uma separação entre o desejo carnal e o espiritual, mas antes ressaltar que o problema do desejo e do outro se potencializa quando agregamos a dimensão de alma humana, seus desejo e suas vontades.
E o que podemos concluir?
Não pretendo concluir: apenas mostrar de algum modo aquilo que tanto me faz sofrer, pelo modo como terminei este relacionamento.
E o que acha então de sairmos está noite?
Por que razão?
Porque além de saber que você me deseja – ainda que não tenha me dito isso eu sei que o sente – eu pareço ter descoberto uma forte atração pelo seu espírito, pela sua alma, não só pelo que você disse, mas principalmente pelo que você me mostrou realmente ser.
E isto lhe fez desejar sair comigo?
Reitero o convite.
Pois isto muito me surpreende...
Não te deveria surpreender as coisas do espírito.
Ou como mostrar a alma quando não se pode olhá-la no espelho, embora ela esteja ali, nos observando...
Por que estas pulsões ocêanicas?
Pois é verdade que se eu não havia sequer pensado sobre uma metáfora que ilustrasse com precisão poética e elegância filosófica - sim, com precisão poética e elegância filosófica! - aquilo que encontro frente ao espelho, este reflexo que se produz em minha consciência: ao pensar na força do mar, no impacto voraz das ondas sobre as rochas, no ímpeto por vezes desmedido e incontido de uma pulsão marítima, oceânica, encontro nessa visão a pintura natural de minha própria natureza. E talvez só me falte descobrir onde o pintor escondeu seus pincéis... Mas para quê? Não há em tudo isso significativa - perfeição?
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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.
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A poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de nossas impressões. Ela é a mais elevada forma de arte literária - na verdade, literatura só é arte se participa intrinsecamente da poesia.
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