In memorian (1926-2010)
Augusto Mathias
Ou como mostrar a alma quando não se pode olhá-la no espelho, embora ela esteja ali, nos observando...
Quando olhamos as fortes águas de uma cachoeira, a descerem abaixo ao encontro de outras tantas águas de um rio, as sensações que nos tomam são das mais diversas. Mas acima de tudo, olhamos para o movimento das águas e pensamos – as águas se movem. Todo aquele mover-se nos faz pensar na existência de alguma coisa que está para além da materialidade das águas em movimento, nos leva a tomar ciência de que há algo que se processa para além daquilo que podemos ver. A percepção da imaterialidade do movimento é em última instância a percepção de algo que pertence a uma outra natureza, que está aqui e que não se resume ao físico. O movimento é de outra ordem. A natureza do movimento é metafísica. Isto parece nos mostrar a existência de ao menos duas dimensões de natureza senão no mundo e nas coisas, ao menos em nós, que as percebemos. Ao menos em nós deve existir algo que transcende a própria fisiologia humana.
Se tivesse agora de me confessar a alguém sobre meus pecados e concupiscências, tenho certeza de que não seria nada muito diferente daquela primeira vez em que tive de comparecer perante o altar ao lado de um padre, para apresentar a Deus (a ele, na verdade) meus deslizes infanto-juvenis. Já naquela época o essencial de minha natureza se revelava: esta mistura que me é própria e que confluía os desejos lascivos de perversidade sexual e os impulsos constantes em busca do divino. A polaridade sexo-divindade ainda se mantém, embora não mais encarnando aquela arrogante pretensão cristã de macular o corpo em favor da alma. Meus desejos mais fortes se coadunam agora numa espécie de indissociável relação erótica, amorosa, divinal. O prazer suscitado pelo corpo, as sensações de gozo e de fascínio pela prática sexual estão como que imbricadas, sem nenhuma condenação, aos desejos pelo prazer em alcançar o divino. Poderia ser que essa relação revelasse uma tentativa desesperada de tornar santo o promíscuo, mas ao contrário – é antes o divino que se mostra tão mais celestial e intenso quanto for mais intenso e profundo o gozo alcançado pelo sexo. Em outras palavras, não há como negar que o prazer de tocar o próprio ser dos deuses é admiravelmente similar ao orgasmo incontrolável e avassalador. Aquela imagem de um panteão divino casto e celibatário não condiz com a própria noção da divindade e do que seja o divino
Neste ponto, e talvez Schopenhauer tivesse razão, a Vontade é o que subjaz todas as coisas, é o Ser do mundo e de nós mesmos. E em sendo deste modo, a música é a arte por excelência da possibilidade humana de tocar o divino, de vislumbrá-lo, ou ao menos entrevê-lo, visto que sua realização é a própria manifestação da Vontade essencial. O homem é incapaz de existir sem música, sem esse instrumento que lhe permite aos poucos chegar a ver a divindade em sua incessante pulsão erótica. E embora ao longo das eras a música adote certas características particulares, ela sempre será essa força humana de conexão com o divino. Principalmente a música instrumental, como Nietzsche ressaltava, que em sua essencialidade musical nos faz sucumbir à força da Vontade.
Enigma é um projeto musical alemão de "New Age" dance, que conflui toda a plasticidade envolvente dos instrumentos de diferentes tipos e origens com as batidas entorpecentes da música dance. Aqui não apenas a mente se vê arrebatada, também o corpo é arrastado do mesmo modo e ao mesmo tempo para o fluxo divino da erupção sexual. Não se é capaz de ouvir seus projetos e permanecer insensível ao desejo pelo sexo e ao sabor do manjar dos deuses. A Vontade aqui é plenamente essencial.
Vale a pena se deixar arrebatar...
"só aquele que permanece inteiramente ele próprio pode, com o tempo, permanecer objeto do amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida, ser sentido como tal. Assim, nada há de mais inepto em amor do que se adaptar um ao outro, de se polir um contra o outro, e todo esse sistema interminável de concessões mútuas... e, quanto mais os seres chegam ao extremo do refinamento, tanto mais é funesto de se enxertar um sobre o outro, em nome do amor, de se transformar um em parasita do outro, quando cada um deles deve se enraizar robustamente em um solo particular, a fim de se tornar todo um mundo para o outro"